No jogo das décimas como na lotaria
Este sistema de acesso ao ensino superior não serve o país, descuida paixões e ignora possíveis talentos. Neste incómodo que este sistema me impõe, sossego apenas com a enorme satisfação que as minhas netas me deram: estão na Universidade.
Sempre que tenho de dar atenção, por interesses de avô, ao acesso ao ensino superior, fico incomodado. Incomoda-me aquele jogo de décimas – como se estabelecerão diferenças de décimas nas notas escolares? Ninguém acha estranho? Incomoda-me o facto desta espécie de lotaria que representa a entrada, escolha ou falha por décimas – num ano fico fora por duas décimas, no ano anterior teria entrado sem problemas, no ano que vem posso entrar ou não dependendo muito mais das notas dos outros do que das minhas. Que raio de sistema é este?
Provavelmente porque, dizendo respeito às Universidades, nós, espíritos menores, entendemos que no cume da escada da sabedoria estarão algoritmos que nos são inacessíveis e que determinarão quem tem ou não capacidades para vir a ser um cidadão com saberes suficientes para melhorar a vida do país e dos seus. Pura ingenuidade a nossa. Nada mais desacertado. O actual sistema não permite, para a grande maioria, nada mais do que aceitar a exigência de adaptação ao que a sorte ditou.
E é esta prática apresentada como se fosse a boa solução de preocupações responsáveis. O ministro da pasta, preocupado com as necessidades de futuro, alerta: “apenas 20% dos que têm entre 25 e 64 anos têm o ensino superior” (e só 50% têm o secundário, dizem os números); o presidente da Comissão Nacional de Acesso ao Ensino Superior, João Guerreiro, avisa que “o aumento de qualificação dos jovens é fundamental na perspectiva do futuro”. E todos nós sabemos também dizer que a formação para o conhecimento é fundamental para elevar o nível do país e de quem cá vive. Mas mantemo-nos neste engano – quase diria, a lembrar Camões, ledo e cego – de julgar que nos melhoraremos com este sistema de acesso ao ensino superior... E os que ficam pelo caminho? E os que entram por escolha burocrática para depois perderem tempo a encontrar o caminho a desoras ou, pura e simplesmente, para desistirem? Quem ganha com isso? Portugal e os portugueses?!
Até admito – embora seja uma demonstração de desconfiança da qualidade do ensino liceal – que se possa estabelecer uma meta, fixa e pré-determinada, mais elevada que o mero 10 para entrar nas Universidades. Mas aqui haveria uma meta conhecida e não variável e de maior dependência do próprio aluno do que de factores exteriores. Mas há outros sistemas mais inteligentes e menos agressivos para estudantes e para o próprio país. E que, com facilidade para todos, captam capacidades. E será fácil, se não se conhecerem já, conhecê-los. Estudem e alterem! Basta sair da preguiça institucional.
“A economia estagnou há duas décadas e não consegue superar a barreira clássica do rendimento médio”, escrevia o director Manuel Carvalho neste jornal. Mas gostamos de apresentar os índices de Gini ou o S80/S20 como factores de desenvolvimento escamoteando que são muito ajudados pelos comparativamente baixos rendimentos da classe média. Quer dizer, fechamos os olhos e garantimos os privilégios... Contentámo-nos com os títulos de Nunca entraram tantos alunos no ensino superior. Foram 51 mil e diz-se marco histórico. O que parece dar razão aos situacionistas. Pura ilusão... Recorde pode ser, mas estará longe de servir as mudanças necessárias. Porque as Universidades não cumprem o seu papel na execução das mudanças, provavelmente pelo excesso tecnocrático e ignorância das humanidades, resultando daí uma provável incompreensão sistémica do global. E Portugal continuará a queixar-se dos mesmos factores negativos de sempre. E se as Universidades podem representar factores positivos de mudança, comecemos por as mudar.
Se nada for feito, se nada for alterado, neste país que nos calhou, acabarei por dar razão à Alexandra Alpha de José Cardoso Pires que “isto não é um país, é um sítio mal frequentado”. Mas a que não falta a vaidade do fato elegante de marca internacional.
Este sistema de acesso ao ensino superior não serve o país, descuida paixões, ignora possíveis talentos – quantos notáveis conhecemos que não mostraram notas liceais de bater no tecto? – e esquece muit@s capazes. E alarga desistências mesmo se há o reconhecimento ministerial de que “no próximo ano temos de ter menos abandono”. Como, se fui parar onde não queria?...
Neste incómodo que este sistema me impõe, sossego apenas com a enorme satisfação que as minhas netas me deram: estão na Universidade.