Morreu Zuza Homem de Mello, um génio com música no coração e nas veias

Um dos maiores vultos na historiografia da música brasileira, Zuza Homem de Mello morreu durante o sono, na madrugada de domingo, vítima de um enfarte do miocárdio. Tinha 87 anos e terminara há dias uma biografia completa de João Gilberto.

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Zuza Homem de Mello em Lisboa, em 2015 NUNO FERREIRA SANTOS

Jornalista, crítico, investigador, radialista, produtor, contrabaixista na juventude, Zuza Homem de Mello morreu durante o sono, em São Paulo. Tinha 87 anos. O Brasil perde assim um dos seus grandes vultos.

Nascido em São Paulo em 20 de Setembro de 1933, Zuza tinha terminado dia 29 o seu novo livro, desta vez uma biografia completa de João Gilberto, dando continuidade a um anterior perfil editado pela Publifolha em 2001 e intitulado João Gilberto. Um livro onde dizia querer aplicar o rigor e seriedade que já haviam presidido a todas as suas anteriores obras: Música popular brasileira cantada e contada (1976), A canção no tempo (em dois volumes, escritos em co-autoria com Jairo Severiano, 1997-98), João Gilberto (2001), A Era dos Festivais (2003), Música nas veias: memórias e ensaios (2007), Eis aqui os bossa-nova (2008), Música com Z (2014) e Copacabana: a trajetória do samba-canção (1929-1958) (2017).

Na noite de sábado, terminada a obra, ele brindara com Ercília Lobo, sua mulher e parceira de inúmeras aventuras musicais ao longo de 35 anos, a “todos os projectos bem-sucedidos”. Horas depois, morreria durante o sono, em sua casa de São Paulo, vitimado por um enfarto do miocárdio. Ercília, num texto assinado por filhos e netos, escreveu: “Zuza nos deixou em paz após viver uma vida plena!”

Senhor de uma escrita elegante, criteriosa e inteligente, José Eduardo Homem de Mello, universalmente conhecido por Zuza, estudou na sua juventude nos Estados Unidos, na School of Jazz e na Julliard School of Music, aí contactando com os grandes nomes do jazz (Ray Brow foi seu professor). Voltou dos EUA em 1959 e o contrabaixo foi o seu instrumento de eleição, até que a televisão o levou a pôr o instrumento de parte e a embarcar noutras aventuras, que da televisão o levaram à rádio (“O rádio era o que me interessava. A voz, a força da voz”, disse ele ao PÚBLICO numa longa entrevista em 2015) e também à programação, inclusive de festivais, de música popular e de jazz. Festivais onde ele aplicou todos os conhecimentos que adquirira nos Estados Unidos com uma plêiade de músicos excepcionais, vendo tocar John Coltrane, Miles Davis, Thelonious Monk, Billie Holiday, Charles Mingus, Dizzy Gillespie e outros.

No Brasil, entrevistou para os seus artigos e livros os nomes maiores da cena musical (Tom Jobim, Vinícius de Moraes, Baden Powell, Elis Regina, entre centenas de outros nomes) e na TV Record ajudou a organizar e contratar nomes como Sammy Davis Jr., Sarah Vaughan ou Ella Fitzgerald. O seu livro Música com Z valeu-lhe um prémio da APCA (Associação Paulista de Críticos de Artes) e em 23 de Agosto de 2018 tornou-se imortal (é esse, por tradição, o nome dado aos académicos) ao ser convidado para membro da Academia Paulista de Letras, ocupando a cadeira n.º 17 num total de 40.

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Zuza Homem de Mello em Lisboa, em 2015 NUNO FERREIRA SANTOS

Entusiasta do seu trabalho, irradiando uma felicidade contagiante, Zuza era também dono de “uma memória absolutamente prodigiosa”, como lembrou agora o jornalista Fernando Kassab no Instagram, onde fez o elogio deste incansável investigador e seu amigo de longa data (Kassab entrevistara Zuza há cerca de um mês para o programa Nossa Gente, lançada em podcast no dia 29 de Agosto). Essa felicidade, pelo êxito e também pelo eco do seu trabalho, espelhava-a em inúmeras intervenções e entrevistas – e teve muitas, nos últimos tempos, na rádio e na internet.

Em Abril de 2019, Zuza esteve em Matosinhos, como um dos convidados da Casa da Arquitectura, para participar nas actividades paralelas à exposição Infinito Vão - 90 Anos de Arquitetura Brasileira. Deu uma aula perante uma sala cheia (Aula Ilustrada e Musicada - 90 Anos da Canção Brasileira, 1928 a 2018), onde fez também curadoria do espectáculo Músicas Brasileiras, Músicos Portugueses, com a Orquestra Jazz de Matosinhos e o baterista gaúcho Kiko Freitas. Foi também um dos dez entrevistados do Studio Casa, em entrevistas conduzidas por jornalistas, arquitectos, críticos e curadores. Foi também em Matosinhos, por esses dias, que teve estreia europeia o filme Zuza, Homem de Jazz, uma ideia original de Ercília Lobo que deu origem a um documentário, realizado por Janaína Dalri e estreado em 2018.

Numa das muitas reacções de pesar pela morte de Zuza Homem de Mello, o Instituto Moreira Salles recordou a parceria mantida com Zuza na programação da Rádio Batuta, sublinhando que ele sempre realizou os programas com extremo entusiasmo”. Desde Março de 2017 que ele apresentava na Batuta o programa Playlist do Zuza, num total de 157 episódios gravados e transmitidos até 20 de Março deste ano. Suspensas as gravações devido à pandemia, o regresso ao estúdio já estava marcado para 13 de Outubro, de modo a que no dia 16 o programa retomasse o seu curso normal. “Ele dizia estar ansioso e cheio de faixas para levar ao ar”, afirmam no comunicado os responsáveis do Instituto Moreira Salles.​

Dizia um jornal brasileiro que, ao falar do dia em que chorou ouvindo o álbum Amoroso, que João Gilberto lançara em 1977, Zuza teria chorado “mais uma vez.” Pois agora é a vez de o Brasil e o mundo chorarem com ele, celebrando o êxito de uma vida plena.

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