A emoção da música no prazer da palavra
Muitos dariam tudo para ver o que ele viu, ouvir o que ele ouviu, ter estado nos lugares onde ele esteve. Entrevista ao musicólogo brasileiro Zuza Homem de Mello
Se há memórias inestimáveis na música popular brasileira, a de Zuza Homem de Mello impõe-se pela clareza, pela precisão e pela completude. Jornalista, crítico, investigador, radialista, produtor e, na juventude, também contrabaixista, ele foi testemunha directa e interessada de várias eras onde a música cresceu e viu crescer entusiastas e génios. De tudo aquilo onde participou já nos legou testemunhos preciosos, reunidos em livros como Música Popular Brasileira Cantada e Contada (1976), A Canção no Tempo (dois volumes em co-autoria com o historiador Jairo Severiano, 1997 e 1998), João Gilberto (2001), A Era dos Festivais (2003), Música nas Veias (2007) e Música com Z (2014), que lhe valeu o prémio APCA (Associação Paulista de Críticos de Artes) na categoria Ensaio/ Crítica/ Reportagem. Recebeu-o em Maio, numa cerimónia pública, e continua a escrever, já que temas não lhe faltam, desde prolongar A Canção no Tempo até ao papel do samba-canção na música popular brasileira. Com constante boa disposição e invejável jovialidade, vive os seus 81 anos (nasceu José Eduardo Homem de Mello a 20 de Setembro de 1933, em São Paulo) sem que a idade lhe pese. Ao lado de Ercília Lobo, sua companheira de muitos anos e parceira em mil e um entusiasmos, vai absorvendo com avidez tudo o que a vida e a música lhe vão dando. E que ele devolverá em forma de livro, na sua escrita elegante, criteriosa e inteligente. A sua história? Começou pela palavra, na família. E foi pela palavra que ele começou (seriamente) a brincar.
Há uma frase muito curiosa que escreveu num dos seus livros: “Tive a ventura de aprender pelas palavras.” E cita vários exemplos de três tios: o tio Alcyr, o tio Flávio e o tio Dias, que era português…
Era português e eu admirava-o muito. Foi editor da editora Melhoramentos, editou livros de História. E mantinha o sotaque português. Tenho uma fotografia dele na cabeceira, lá em casa. Quando a gente ia visitá-lo (o meu pai e a minha mãe levavam-me a visitar tios e tias), ia de automóvel, podia-se estacionar na frente da casa que não havia problema, e enquanto eles ficavam conversando eu ia directo para o escritório do meu tio, adorava ouvi-lo falar. Era uma pessoa muito culta e ligada à literatura.
Que idade tinha nessa altura?
Uns 11, 12 anos.
E o tio Alcyr?
Também falava aportuguesado. Embora fosse brasileiro, adorava falar como português, não falava como nós. Era motivo de um certo riso da meninada: imagina um brasileiro falando assim… Então era o tio Dias, o tio Alcyr…
E o tio Flávio.
Era também um homem culto, um sábio. Vivia nos livros o tempo todo, era um solteirão que adorava ler. E era o mais velho dos filhos da minha avó. O meu pai era o segundo, entre os seis filhos do meu avô, Francisco Homem de Mello, engenheiro ferroviário, que passava a vida inteira no interior construindo estradas-de-ferro. Por isso nós temos no sangue a veia da importância da rede ferroviária brasileira, que foi detonada no governo de Juscelino Kubitschek para que o automobilismo penetrasse no Brasil. E essa perda que o Brasil teve nunca mais se recuperou. É um dos poucos países do mundo que, tendo tido uma linda rede ferroviária, hoje não tem nem sucata. Nada resta.
Qual era a actividade dos seus pais?
O meu pai era fazendeiro. Ele, como os demais (como eu, aliás), derivou para um outro ramo de actividade que não tinha nada a ver. Porque o meu avô era engenheiro, os meus três tios foram engenheiros… Mas ele adorava bicho, planta, e foi pouco a pouco sendo designado uma espécie de gerente da fazenda da família Cintra, que era da mãe dele. Aos poucos, ele foi adquirindo pedaços e acabou se tornando o proprietário de todos. E foi comprando outras terras. A paixão do meu pai eram os cavalos de corrida, puro-sangue inglês, paixão da qual só se afastou nos últimos anos de vida.
E a sua mãe?
Minha mãe era doméstica, nunca trabalhou fora de casa. Até estudou em casa. Meu avô materno era médico, um célebre cirurgião do coração, fundador da Faculdade de Medicina de São Paulo. Estudou em Paris e foi muito bem-sucedido e muito elogiado em São Paulo. Morreu muito cedo, do coração, em 1934, no ano seguinte ao do meu nascimento. E o meu outro avô, o paterno, morreu em 1916, quando o meu pai tinha 16 anos de idade. Praticamente não conheci nenhum deles.
Quando dá o exemplo dos seus tios e não dos seus pais, isso quer dizer que a sua preocupação já era mais a da escrita enquanto a do seu pai era a da terra?
O meu pai só falava de agricultura. Acabo de ler uma carta que ele me deixou, sobre uma visita que fez a Portugal. Duas páginas. Só fala de plantação, coisas assim. Ou seja: para mim, essa carta só vale como relíquia, porque não tem nenhum assunto lá com o qual eu me relacione. Já os meus tios, não. Além de cultos, eram grandes contadores de histórias. E eu ficava fascinado a ouvi-los.
Quando diz que, em rapaz, inventava histórias sobre os discos que ouvia em casa dos seus pais, era mesmo assim? Punha um disco e inventava uma história?
Eu inventava histórias muito antes disso. Quando eu era menino, com dez anos, eu tinha um amigo, invisível, chamado Loto Cotovalo, com quem eu vivia. E onde eu ia, tinha que ter um lugar p’ra ele. E eu ficava conversando com ele o tempo todo. Viajava com os meus tios e perguntava: onde é o lugar do Loto? E ia sempre inventando, criando coisas. As histórias musicais geravam os espectáculos que eu fazia na fazenda. Nunca tinha tido oportunidade de ver os artistas ao vivo, mas eles eram os meus heróis. Os primeiros foram Luiz Gonzaga e Mário Reis. Sabia de cor tudo o que eles faziam. E tinha outros: Bob Nelson, Dick Farney, os grandes cantores da rádio.
A rádio foi uma grande aprendizagem para a sua geração?
Fundamental. Porque os programas eram, na maioria, à noite e ao vivo, com orquestras, com conjuntos. Aquilo entrava pela minha cabeça e eu imaginava como era. Havia um programa de um comediante chamado Nhô Totico. No dia em que eu fui, levado por um tio, ao auditório da Rádio Cultura, assistir ao programa dele, fiquei excitadíssimo. Pois foi a maior decepção da minha vida. Porque o Nhô Totico era um cara que parecia um dentista, sozinho, imitando aquelas vozes todas! Na minha imaginação, eu via a figura da professora, dos alunos… Ali, perdeu toda a graça. Isso mostra bem como a rádio excitava a imaginação de uma pessoa. Ao contrário da televisão.
A certa altura, começa o interesse pelo contrabaixo. Foi o seu único instrumento?
Não, antes tocava piano, durante muito tempo. E gaita-de-boca [harmónica].
A partir de que idade?
Por volta dos 13 anos. Fui para o colégio diocesano dos Irmãos Maristas e lá havia uma sala de música, com cabinas individuais. E cada cabina tinha um piano. Eu entrava numa, fechava a porta e ficava duas horas tocando sem parar, imaginado, inventando coisas. Nem ia para o recreio. Tudo intuitivo. Depois tive aulas de piano, não gostei, a professora não soube perceber quem eu era, era burocrática. E isso mostra o quão importante é ter um bom professor. Porque anos depois eu tive um. E ele percebeu. Mas o instrumento que mais me fascinava era o contrabaixo.
Isso foi no Boteco, um bar de São Paulo?
Isso. Eu ia à noite, ouvir o Moacyr Peixoto e o Juvenal Amaral, que era o contrabaixista e meu mestre de olhar. Quando consegui comprar um contrabaixo, eu já estava tocando.
Esse seu primeiro contrabaixo só tinha três cordas?
Um horror! Xu Vianna, grande contrabaixista de São Paulo, me vendeu um contrabaixo só com três cordas [que era vulgar no século XIX, mas foi depois caindo em desuso até quase desaparecer]. Quando eu comecei a perceber, disse: que coisa, não é possível um contrabaixo só com três cordas, é a mesma coisa que um piano sem as teclas pretas!
Mas depois arranjou um contrabaixo em condições…
Um contrabaixo maravilhoso. Quando deixei de tocar, não o vendi, entreguei-o ao Luiz Chaves [1931-2007], fundador do Zimbo Trio. Todas as gravações da Elis Regina com o Zimbo Trio são feitas com o meu contrabaixo. E os discos do Zimbo Trio também.
Nessa altura, já estava na TV Record.
A televisão entrou na minha vida, em 1959, quando eu volto dos Estados Unidos. Fiquei lá dez anos. Mas o meu fascínio pela rádio permaneceu latente, aguardando o momento daquilo se realizar. O que só sucedeu em 1947, quando eu tinha 43 anos. Eu trabalhava num meio de comunicação muito mais ambicionado que a rádio, mas a rádio era o que me interessava. A voz, a força da voz. Um cara com voz bonita pode fazer milagres.
Há uma coisa que se passou consigo e não se deve ter passado com mais ninguém no mundo: o seu primeiro salário foi todo gasto no Groove’s Dictionary of Music…
Que eu tenho até hoje. Era indispensável para ter à mão as informações de que eu precisaria. Livros de referência tenho muitos. Em todo o lugar onde vou, compro. E isso me deu a possibilidade de ter uma biblioteca referencial muito grande. Se me perguntar coisas da música de Cuba, do México, da Argentina, eu tenho referências de tudo isso.
Você começa, em 1956, a escrever coisas sobre jazz…
O meu primeiro artigo foi sobre a banda do Dizzy Gillespie em São Paulo. Mas foi um artigo muito mal escrito e muito pretensioso. Eu, diante daquele verdadeiro manancial de feras de música, pus-me a discordar como se entendesse daquilo. Tinha Phil Woods, Quincy Jones… maravilhosos músicos. Mas rapidamente percebi isso e mudei.
Nos seus textos, a adjectivação é usada de uma maneira muito criteriosa. Usa, para cada personagem, um adjectivo diferente e feito muito à medida. Porquê?
Eu tenho um caderninho de adjectivos, coleccionado através de textos que eu leio. Por exemplo: para descrição fisionómica das pessoas. Porque a memória pode falhar. Então um quero um sorriso quê? Sardónico. E uso essa precisa palavra.
O que é que o leva a ir para os Estados Unidos, em 1957, aos 23 anos?
Foi depois da constatação de que não queria mais seguir engenharia.
Quem é que o convenceu a ir para engenharia? Foi uma escolha sua?
Fui meio que induzido pelos meus pais. Porque naquela época só tinha três profissões a seguir: advocacia, medicina e engenharia. O resto não existia. Se você pensasse em ser administrador de empresas, estava tramado. Arte, então, nem pensar! Mas eu já tocava contrabaixo e quando ficou decidido que iria por aí, mamãe me disse: “Se é para estudar música, vai ter que ser a sério. Então vai para os Estados Unidos. Fica dois anos aqui, se preparando e depois vai.” E foi assim que aconteceu. A ideia partiu dela, não de mim.
Nos Estados Unidos estudou na School of Jazz e na Julliard School of Music…
Tive que passar por um exame de aprovação, que me deixou, para falar verdade, apavorado. “E se eu for reprovado? Vou voltar p’ra casa!”
Como foi o exame?
Foi duro. A exigência era enorme, a Julliard era uma escola muito complicada, eles não deixavam passar nada e eu tinha dificuldades muito grandes, primeiro por causa da diferença de linguagem. Os nomes das notas são outros. Então, dar um acorde, fazer um solfejo, era tudo completamente diferente do que eu estava habituado a fazer até então.
E passou à tangente ou com uma margem boa?
Passei normal. Eu diria que entre 1 e 10 tirei entre 6 e 7, não mais. Nunca fui um aluno brilhante, nunca. Nunca fui considerado entre os primeiros da classe, ao contrário. Era dos últimos, não só na escalação como na posição geográfica. Sempre lá atrás. E isso acaba talvez por me dar uma atracção para ser contrabaixista, porque o contrabaixista é o sujeito que fica lá atrás, vendo tudo o que está acontecendo. E sem nada atrás dele.
Ter como professor um músico como Ray Brown foi fantástico, não?
Diante dele quase desmaiei de emoção. Mas o que mais me fascinou é que ele era uma pessoa muito directa, não se considerava o melhor contrabaixista americano do jazz. Dizia: “Quem é bom é o Oscar Pettiford, quem é bom é o Red Mitchell, eu tenho que estudar todo o dia!” E além disso ele me elevou num parâmetro de dignidade e de procedimento que me norteou pr’o resto da vida. Não que eu já não tivesse uma formação correcta, dada pela família, pelos pais, sempre fomos uma família que valorizava isso mais do que qualquer outra coisa. Mas o Ray Brown descortinou-me isso de uma maneira muito mais prática, por ser americano. Aliás, foi exactamente o que me surpreendeu na Julliard: não era um bicho-de-sete-cabeças, era muito mais fácil do que eu imaginei. Com a forma de ensinar música dos americanos, aprende-se muito mais rapidamente e em menor tempo. Mas é preciso dar muito mais duro no trabalho de casa.
Mas a sua estadia nos Estados Unidos é também muito importante devido aos músicos que você ia vendo ao vivo: Coltrane, Miles, Monk, Billie Holiday…
E muitos outros. Passei uma noite inteira conversando com Cecil Taylor, entrevistei Charles Mingus na casa dele, vi músicos que estavam ainda em formação, como o Lee Morgan. Então eu tive, na School of Jazz, o contacto físico com os meus heróis. Era o Max Roach, ali, era o Dizzy… e aquelas palestras, maravilhosas! Essa facilidade de eu gastar um ou dois dólares para ouvir quem eu quisesse, toda a noite. Era o que fazia. Nem sempre, porque tinha que estudar. Mas podendo, saía e ia quase sempre.
Terminou o curso com que classificação?
Na School of Jazz, o final era celebrado com um concerto, no qual eu participei como contrabaixista, com um grupo chefiado pelo Jimmy Giuffre (sax) e com o Herb Ellis (guitarra). Depois fui para Nova Iorque, para a Julliard School, começar estudos de música clássica (ali não havia jazz): teoria, composição, contraponto, arranjo, história da música. Foi um curso muito produtivo, deu-me uma base de formação extraordinária.
Quando volta para o Brasil, volta com a ideia de ser músico?
Com a ideia de escrever sobre música, era esse o meu objectivo. Aliás, já escrevia [tinha uma coluna semanal sobre jazz no jornal paulista Folha da Noite]. E pensei que ia ser promovido. Mas fui despedido. Bela recepção! Não sei porquê. E durante uns meses tive que procurar emprego, e quando consegui foi na televisão, a plugar microfones. Até que um português, chamado senhor Spencer, percebeu que eu sabia mais e me disse: “Você vai sair e vai ser o chefe do Teatro Record.” Passei a perna em todos eles.
Tinha algum sítio para onde escrever, nesse período?
Só artigos esporádicos, para o Jornal do Brasil. Aí é que comecei a trabalhar no meu primeiro livro [Música Popular Brasileira Cantada e Contada, 1976, reeditado em 2008 como Eis Aqui os Bossa-Nova], que é feito de entrevistas, contando a história da bossa-nova. A narrativa é deles, dos entrevistados: o Tom Jobim, o Vinícius, o Baden Powell, a Elis Regina, todos eles falando. Eu já os conhecia da TV. Foi aí que eu me tornei conhecido do meio musical. Não do público, porque eu era o engenheiro de som e o meu nome só aparecia na ficha técnica, nada mais que isso.
Quando é que começa com o programa O Fino da Música?
Na primeira fase da TV Record, de 1959 a 1962, havia outra actividade que eu exercia: assistente do director para contratação de artistas internacionais. Aí passei a trabalhar duplamente: como engenheiro de som e como contratador. Comecei com Sammy Davis Jr. Depois vieram Sarah Vaughan, Ella Fitzgerald… Na contratação de Nat King Cole não trabalhei directamente, mas trabalhei como engenheiro de som dele durante uma semana. Até que essa actividade teve que ser diminuída por causa da inflação do dólar.
E voltou a ser apenas engenheiro de som?
Aí surge na vida do director (Paulinho Machado de Carvalho) a Elis Regina, ao vencer o Festival. Ele contrata a Elis e dá-lhe o programa O Fino da Bossa. Gravei o primeiro e disse: temos aqui um programa histórico, vou guardar essa fita. E a partir daí passei a guardar fitas e tudo o que eu achava importante. E isso gerou aqueles três CD [Elis com Jair Rodrigues, O Fino da Bossa 1, 2 e 3] e tenho mais material em casa, para um dia…
É depois disso que vai trabalhar na TV Cultura?
Primeiro, trabalhei na Enciclopédia da Música Popular Brasileira, como coordenador. Dois anos. Nessa altura é que comecei a trabalhar a sério no meu primeiro livro, a partir das entrevistas já gravadas. Aí entra a rádio e a produção de discos, nos anos 1970. O primeiro foi de uma cantora chamada Maria Marta. O Walter Silva, que era um grande radialista, desafiou-me a produzi-lo, na RCA Victor. Tomei a empreitada e fiz o disco, ficou muito lindo, muito bom, convoquei óptimos arranjadores. Eu tinha conhecimento de música, de técnica de som e de mixagem também. Isso foi fundamental. Em 1978, a TV Cultura já entra um bocado, quando eles me convidam como programador dos festivais de jazz. Houve dois: em 1978 e em 1980…
Nessa altura já misturava várias áreas: produção, programação, jornalismo…
Para falar verdade, não sei o que é que eu sou. Jornalista, ex-radialista, ex-contrabaixista, ex-produtor de discos, apresentador, escritor, historiador? Tenho um pouco de tudo isso. Para efeito de inscrição num hotel, eu ponho “jornalista”. Mas dependendo do que for, eu posso pôr outra coisa. Sou director de shows, fiz direcção de muitos espectáculos de pessoas de peso, Milton Nascimento, Gilberto Gil... É uma coisa multifacetada.
Assistiu a milhares de espectáculos ao longo destas décadas, mas quando lhe perguntaram quais os que mais o marcaram você cita em primeiro lugar Ray Charles. O que é que, num espectáculo, o leva a dizer: isto é extraordinário?
Primeiro, é o grau de emoção que o show provoca. Pode provocar lágrimas, choro, felicidade. Uma coisa que atinge a nossa parte mais sensível. E isso pode acontecer em qualquer tipo de música, mesmo daquela a que nós chamamos no Brasil de “brega” [o correspondente ao termo “pimba” em Portugal]. Não importa. Pode ser um concerto como eu vi, A Sagração da Primavera de Stravinsky regida pelo Pierre Monteux, saí de lá vibrando, estava quase caindo pela calçada, de emoção. Mas depois da emoção vem o prazer, aquela sensação que nos faz sorrir, sempre. Quando pego num gravador e começo a escutar uma coisa, a primeira reacção visível é um sorriso, de alegria, de satisfação quando aquilo me agrada. Só depois da emoção e do prazer é que vem a técnica. Embora quando um sujeito faz um acorde errado — não é a nota desafinada que me atinge tanto, isso até perdoo —, o acorde errado não tem perdão. Porque aí o sujeito mostrou uma inaptidão, um desconhecimento do que tem que ter p’ra fazer música. Essa é a razão pela qual, nos dias de hoje, eu sinto muito a falta de harmonia. O que me faz falta no rapper é harmonia. E, no entanto, a harmonia é o resumo da história da música, desde a Grécia. A evolução harmónica é que vai traçando o rumo da música! E há ainda uma coisa, que reputo de essencial: atraio-me pelo espectáculo quando percebo que o artista se desconecta com o público, mergulhando por inteiro na obra que executa. Precisamente o oposto da grande maioria dos grandes nomes do show business, cuja preocupação maior é estar o mais que puderem conectados com o público que assiste.
Num dos capítulos do livro Música nas Veias, “Vozes da alcova”, você analisa o abismo que vai entre a sensualidade sugerida nas vozes das cantoras de outras eras e os artifícios de imagem nas cantoras de hoje. Foi uma evolução natural?
É um recurso, extramusical. Que foi sendo incorporado para pretender ser considerado música mas não é. É a transferência da música para o entretenimento. A análise que é feita desses shows prende-se muito mais com aquilo que não faz parte da música. Por exemplo: belo trabalho das luzes! A potência de não sei quantos milhares de watts! O palco que girava, o elevador que descia ou subia, os fogos-de-artifício! É um desvio para entreter as pessoas, a alto custo, sem que isso represente a essência da música. Esta pode ser feita para três, cinco, dez, vinte ouvintes, e tchau! Quantas vezes não fui ao Five Spot Café [em Nova Iorque] escutar Thelonious Monk com John Coltrane, Shadow Wilson e Ahmed Abdul Malik (o quarteto do Monk) na companhia de 15 pessoas! Só.
Numa entrevista que fez a Maria Bethânia, em 1973, a certa altura ela diz que “agora tudo é diva, tudo é estrela, tudo vira moda”. Como é que vê as cantoras brasileiras desta nova geração? Quem é que vê a surgir com algum valor? E quem é que acha que está a cair nalgum excesso e de certo modo a matar a carreira?
A Daniela Mercury acho que está caindo nessa falsidade… embora seja boa cantora. Ao contrário da maioria das pessoas, eu admiro muito a Ivete Sangalo, ela sabe cantar. Só que optou por uma carreira em que não precisa cantar bem. Pode até ficar saracoteando ali, sem abrir o bico, e está tudo certo. Ou seja: de uma certa forma, ela abre mão de uma grande qualidade que ela tem. E isso vai-se fazer valer no futuro. Quando se falar da Ivete Sangalo, daqui a uns 50 anos, a gente vai lembrar dos shows, mas aquilo que se ouve dela não terá tido o valor correspondente. Porque ela não soube dirigir a parte que realmente conta. Isso é um atractivo que faz com que a pessoa fique meio deslumbrada com o sucesso. E é tão fácil ficar deslumbrado com o sucesso…
Mas Daniela e Ivete são já de uma geração intermédia. E as mais novas?
A Mariene de Castro é candidata a diva. Embora ela recentemente tenha se deixado levar por uma provável sugestão da gravadora de fazer uma homenagem à Clara Nunes [1942-1983] e é uma catástrofe! Ela jogou de lado o que tem de mais precioso, que é a baianidade dela! Cantar como uma Clara Nunes? Calma… Mas ela junto com as baianas é de entornar o caldo! É sen-sa-cio-nal! Agora aquela de que eu gosto muito, de entre essas novas, a Vanessa da Mata, é que é a candidata a grande estrela brasileira. Ela é diva. Ela toma conta do palco como a Bethânia faz. Ilumina o palco. E isso tem a ver com aquela pergunta sobre o que eu admiro num show. É esta capacidade de a pessoa ter um magnetismo — não é carisma, palavra que não funciona, o pessoal usa carisma até para coisas: “Esse copo tem carisma!” Ora vai passar, tenha paciência! O magnetismo é outra coisa. Ou se tem ou não se tem. É uma iluminação, uma luminosidade própria. E quando ela vem para o palco, isso transparece na interpretação da música.
Há outros nomes que queira citar, dessa mesma geração?
Há mais, mas nenhuma delas tem esse magnetismo como a Vanessa da Mata. A Mônica Salmaso, que é uma óptima cantora, não tem. Mas há outros nomes a reter: a Mariana Aydar, a Bruna Caram (muito nova, mas predestinada), a Roberta Sá (das boas vozes femininas surgidas ultimamente no Brasil e que tem sabido cuidar com esmero de sua carreira), a Alice Caymmi [neta de Dorival] ou a Tulipa Ruiz, que sabe cantar.
E vozes masculinas? Há alguma que, no seu entender, se destaque?
Renato Braz: para mim, é o melhor. Zé Renato, maravilhoso (mas esse é da geração anterior). Marcos Sacramento, muito bom. Atenção ao Pélico, um cantor vindo do rock e bom compositor. Fora outros que eu desconheço, porque não dá p’ra saber tudo. Por exemplo: agora ressurgiu um grupo chamado O Terno. São três músicos, cantores, um deles é filho do Maurício Pereira [do grupo Os Mulheres Negras]. Muito interessante!
Como é que vê o Brasil, musicalmente, hoje?
Acho que regrediu na música, nos últimos anos. Fazemos uma grande música, mas ouvimos uma péssima música. Os meios de comunicação empurram goela abaixo ao povo brasileiro o que há de mais rasteiro, de mais inqualificável. E vão habituando a juventude a ter isso como referência, perdendo a oportunidade de ver aquilo que de facto se faz de melhor. Porque ela se satisfaz com uma comida ruim: mal temperada, mal cozida e que ainda vem no prato errado. É horrível! Se hoje você ligar a televisão em São Paulo, no Rio ou em qualquer lugar do Brasil à espera de ouvir música brasileira, você está frito. E vai dizer que o Brasil não sabe fazer música.
E no entanto a música é um dos maiores trunfos distintivos do Brasil…
A música e o futebol. O Brasil não é admirado pelo algodão, pelas máquinas agrícolas, pelos vinhos… Não! É admirado pelo futebol e pela música popular, ponto final. Essas duas actividades são representativas da admiração que portugueses, coreanos, seja quem for, têm pelo Brasil. Nas outras artes, há alguma coisa que tem evoluído. Por exemplo, a dança. A literatura também. Basta ir à FLIP [Festa Literária Internacional de Paraty] e ver. E quem são as pessoas que vão à FLIP? Aquelas que querem ver aquilo que não é o Brasil que se fala e que se escreve. Aquele é o Brasil que se admira, o que nós queremos ver, o Brasil que a gente sente orgulho de falar: isso é brasileiro! Essa face do Brasil existe, está lá, viva, acontecendo em qualquer lugar, mas 80% da população não tem a menor noção. Tem gente de 20 anos que não sabe quem foi a Elis Regina, é um novo vocábulo p’ra eles. É como se nos Estados Unidos alguém nunca tivesse ouvido falar do Frank Sinatra! Ou em Portugal alguém nunca ter ouvido falar da Amália Rodrigues! É um monumento nacional!
Isso representa um corte geracional?
Isso me deixa muito preocupado com a juventude. Daqui a alguns anos, não sei o que essa juventude vai ter de bagagem para poder se orgulhar do que teve, como nós tivemos na juventude. Nós tivemos uma vivência que era uma verdadeira cachoeira de maravilhosos criadores. De repente chega um Chico César, um Zeca Baleiro, então não cessa, é só ir atrás. Mas só vai atrás quem tem conhecimento. E essa pessoa é que está faltando no Brasil. Não é o criador, é quem sabe reconhecer o criador. Dar força para fulano, como foi feito na vida do Milton Nascimento pelo Aldair Lessa: “Esse cara não vende nada!” “Ele vai vender.” Acreditar na visão de quem percebe.
Falando ainda em Elis Regina, você esteve na origem de um disco gravado ao vivo que foi dos melhores registos dela. Como foi isso?
Ia-se comemorar 50 anos do nascimento da Elis, em 1995, e queriam um trabalho representativo. E eu disse: “Tenho lá em casa a fita.” Foi a gravação de um espectáculo que nós fizemos no Anhembi [a 25 de Julho de 1977], produzido por mim para uma série chamada O Fino da Música, da Rádio Jovem Pan. O terceiro foi esse e eu tinha a fita. Começámos a trabalhar em cima dela, limámos os demais intérpretes (Ivan Lins, João Bosco, Renato Teixeira, agora existe a possibilidade de relançar esse trabalho incluindo esses intérpretes) e fez-se o disco [Elis Ao Vivo, ed. Velas, 1995].
Como é que ela estava, nesse período?
Estava gloriosa. Grávida da Maria Rita, com sete meses, teve a ideia de convocar os músicos do conjunto anterior dela, o Hélio Delmiro, o Luizão Maia, o Paulinho Braga não pôde porque estava fora do Brasil e ela pegou — na hora! — o Toninho Pinheiro, que era baterista do César [Camargo Mariano, marido de Elis] e era o melhor. Anos depois, a produção foi finalizada pelo César nos Estados Unidos. Ele é parte fundamental no chegar-se a um resultado que foi elogiado pela revista Rolling Stone como o melhor disco ao vivo da Elis Regina. E eu concordo inteiramente. Porque ela está inteira, vivendo a sua plenitude. E foi fácil p’ra ela fazer esse espectáculo. Ela se entregou felicíssima a um público que estava pronto para aplaudi-la e sair de lá felicíssimo.
Nos seus joviais 81 anos já fez muita coisa. Há alguma actividade, para lá dessas, a que ainda gostaria de se entregar nestes anos?
Bem, estou escrevendo o meu próximo livro, já escrevi três quartos. Mas coisas que não tenha ainda feito? Arranjos, arranjos de música. A actividade de arranjador me seduz sobremaneira. Não chega a ser uma frustração, porque eu cheguei perto disso. Nunca fiz porque fui esquecendo aquelas manhas todas, mas na minha cabeça há muitas ideias fervilhando sobre um tema, aqui podia ser assim, ali de outra maneira, fazer um arranjo sobre uma composição já existente. Sinto que é uma coisa que me sairia muito bem.