O perigo de esperar que o Estado nos salve
O maior perigo do Plano de Recuperação e Resiliência é o de se acomodar em modelos esgotados em vez de abrir novos desafios e criar novas oportunidades. O seu defeito maior não é prever investimento no Estado, é colocar o Estado no centro das suas prioridades e recursos
As últimas semanas foram férteis em cerimónias, apresentações ou de debates em torno do Plano de Recuperação Resiliência (PRR) que, através de vários mecanismos e formatos, prevê a transferência para Portugal de cerca de 58 mil milhões de euros de fundos europeus. Compreende-se que, perante a ansiedade da pandemia e a aflição da crise económica, o Governo recorra ao plano como um suplemento de alma, o remédio que vai resgatar o país dos problemas. Precisamos de algo que nos dê confiança. Mas entre as expectativas realistas e a propaganda que empresta ao plano um aroma de pimenta da Índia ou de ouro do Brasil, há um meio-termo: o plano será uma ajuda preciosa, mas não passa disso mesmo, de uma ajuda. O essencial, hoje como sempre, depende do que os governos, o Estado e a sociedade portuguesa forem capazes de fazer.
Para começar, é indispensável olhar para trás e avaliar o impacte de vários ciclos de fundos comunitários. Ao contrário da visão pessimista e redutora que tende a considerar os milhares de milhões de verbas europeias como um desperdício que favoreceu uma classe ociosa (os Ferrari dos empresários do Norte ou os jipes dos agricultores do Sul), muito desse dinheiro mudou de facto o país. Portugal não teria um aparelho tecnológico e científico próximo do primeiro mundo sem esses apoios; não teria sectores mais capazes de competir como o têxtil, a metalomecânica ou o calçado; não teria um sector agrícola que, com muito menos área utilizada e muitíssimos menos trabalhadores, é um pilar das exportações nacionais.
Mas há também insucessos que têm de ser analisados para se evitar a sua repetição. A economia estagnou há duas décadas e não consegue superar a barreira clássica do rendimento médio. Os sectores protegidos continuam a ditar as leis. O rentismo e o extractivismo prosperam. As empresas que têm de competir no exterior continuam sem a relevância social e política que merecem. O clientelismo e a corrupção enraizaram-se à sombra de um estado obeso, labiríntico e hipercentralizado. Perdemos ano após ano posições no ranking europeu do rendimento per capita.
Não é possível conceber um plano para o futuro sem ter em conta estas contradições. Portugal anda há 20 anos à procura de um destino. A corrupção e a concorrência europeia destruíram grande parte do capitalismo português em favor dos espanhóis na banca ou dos chineses na energia. A geração mais qualificada de sempre está a ser derretida com salários baixos, a precariedade ou a emigração. Pressente-se um colete-de-forças. O PRR não o pretende destruir. O R da resiliência pesa mais do que o R da recuperação.
É este o seu maior problema. O de nos saber a mais do mesmo. Hoje com mais comboios ou camas para cuidados continuados, outrora com mais auto-estradas ou obras nas escolas. O inventário insano de António Costa Silva não serviu para nada. Talvez discutamos se a ponte de Alcoutim faz sentido, ou se a ligação Porto-Lisboa deve ser a 200 ou 300 Km/h. Mas, ao fazê-lo, passamos ao lado da indústria, da robótica e da inteligência artificial nas empresas, nos clusters, na relação entre as universidades e empresas, nas startups ou na metalomecânica.
O maior perigo do plano é, por isso, o de se acomodar na realidade que existe em vez de abrir novos desafios e criar novas oportunidades. O seu defeito maior não é prever investimento no Estado, é colocar o Estado no centro das suas prioridades e recursos. Apesar de haver alguma condicionalidade europeia no seu desenho (fatias obrigatórias para a transição digital e para a descarbonização), o PRR não tinha de ser assim. Não tinha de ser um plano mais próximo do ideário estatizante do Bloco ou do PCP do que da social-democracia do PS.
Em tempos, António Costa disse que, ao contrário da revolução industrial, a revolução digital permite a Portugal estar na linha da frente uma grande transformação mundial. Tem razão. Mas, acreditar que é o Estado protector e não a sociedade civil a fazer esse caminho, não perceber o que aconteceu na Irlanda, na Estónia ou na República Checa e acreditar que comboios, “simplexes” ou pontes para Espanha resolvem o problema do país é o primeiro passo para uma nova desilusão. Que só um reequilíbrio entre as prioridades do Estado e da economia pode evitar. Ainda vamos a tempo.