Arquitectos brasileiros criticam doação do acervo de Paulo Mendes da Rocha a Portugal

Universidade de São Paulo manifestou “grande pesar” pela decisão do Prémio Pritzker 2006. O arquitecto do Museu dos Coches desvaloriza as críticas e diz ter optado pela Casa da Arquitectura por se tratar de “uma instituição maravilhosa”, com “grande consistência e integridade”.

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Paulo Mendes da Rocha fotografado em Lisboa em 2013 NUNO FERREIRA SANTOS

Caiu mal nos meios culturais e na comunidade da arquitectura brasileira, e especialmente em São Paulo, a doação, anunciada na quarta-feira, da totalidade do acervo profissional de Paulo Mendes da Rocha a uma instituição estrangeira, neste caso, à portuguesa Casa da Arquitectura.

Pouco tempo após a difusão da notícia no Brasil pela Folha de São Paulo e em Portugal pelo PÚBLICO, as críticas surgiram nas redes sociais, e a própria Faculdade de Arquitectura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP)– onde Paulo Mendes da Rocha foi professor durante anos – publicou uma nota a manifestar “grande pesar” pela decisão daquele que é o mais prestigiado arquitecto brasileiro vivo, distinguido com o Prémio Pritzker em 2006.

“Apesar de inúmeras tentativas e propostas de recebimento do seu acervo, a decisão soberana do arquitecto foi diversa da nossa expectativa”, diz o comunicado, citado pela Folha de São Paulo. E acrescenta: “O acervo de Paulo Mendes da Rocha teria para nós um duplo significado. Por um lado, a importância do material, nos seus próprios termos, e seu vínculo com a história desta instituição pública de ensino. Por outro, integraria o maior acervo público de arquitectura, urbanismo e design.”

O diário paulista revela que a USP chegou a encetar negociações com o arquitecto para que o acervo fosse doado à sua FAU e ao Instituto de Estudos Brasileiros, mas sem sucesso.

Em declaração ao PÚBLICO por telefone, esta quinta-feira, Paulo Mendes da Rocha explicou que o contacto da Universidade de São Paulo aconteceu já depois de ter assumido o seu “compromisso com a Casa da Arquitectura, há cerca de dois anos”. “Estou muito satisfeito com o destino que foi dado a toda a minha obra. A Casa da Arquitectura tem uma grande consistência e integridade, e eu tenho a certeza de que vai ser muito útil”, diz o arquitecto.

O autor do projecto do novo Museu dos Coches, em Lisboa – onde trabalhou com Nuno Sampaio, que depois assumiria a direcção da Casa da Arquitectura –, confirmou que a sua relação com o projecto da instituição de Matosinhos, e com o próprio Governo português, vem já desde há cerca de uma década. 

Mendes da Rocha, de 91 anos, lembra a sua idade também como uma razão para se ter ocupado do destino a dar aos seus arquivos. “A certa altura, pus-me a pensar no que fazer com tudo isso. Cheguei a pensar em incinerar tudo. Sabe, eu tenho seis filhos, e quando um arquitecto morre, o seu acervo torna-se um problema para eles”, referiu. Foi nessa ocasião, recorda, que recebeu “a sugestão, e o convite”, de Nuno Sampaio – “Eu imediatamente aceitei.”

Depois de um contrato firmado em Dezembro de 2019, as perto de 8800 peças que constituem o seu arquivo chegaram agora a Matosinhos, concretizando essa decisão, mas simultaneamente dando origem aos lamentos e às críticas da comunidade arquitectónica e universitária de São Paulo.

Além do comunicado da USP, o arquitecto José Lira, um dos seus docentes, escreveu nas redes sociais: “A despeito de seus méritos, [a Casa da Arquitectura] não é uma instituição de ensino e pesquisa, nem muito menos pública, mas um centro privado de guarda de acervos e exposições de arquitectura. E pior, fora do Brasil. É desanimador saber disso. E num momento de erosão cultural do país”.

Outro professor e historiador de Arquitectura, Renato Anelli, viu também na decisão de Paulo Mendes da Rocha “um momento triste para a cultura arquitectónica brasileira, em especial para todos aqueles que lutam pela preservação de acervos arquitectónicos”. “Não discuto a qualidade e a importância da Casa da Arquitectura. Questiono a desnacionalização de um acervo dessa importância. O Brasil fica mais pobre”, acrescentou.

Críticas que Paulo Mendes da Rocha desvaloriza. “Era de esperar uma certa crítica: ‘Porque é que não deu aqui para nós?...’ E, para falar verdade – e isso não é vã glória –, eu considero essas críticas, e essa atenção, um certo elogio, até [já que] não tinha muita confiança sobre o valor [dos arquivos]”. O arquitecto lembra que se trata, em grande parte, de “trabalhos de uma época em que não existiam computadores e os desenhos eram feitos com nanquim – e isso tem até uma certa graça”. E, pelo que já conhece da instituição de Matosinhos, e do trabalho de Nuno Sampaio, Paulo Mendes da Rocha vê nela o lugar adequado para a preservação do seu acervo.

No país de Bolsonaro

Num artigo de opinião escrito a pretexto da polémica motivada pela escolha de Paulo Mendes da Rocha, o jornalista da Folha de São Paulo Silas Martí enquadra-a no contexto político actual do Brasil sob a presidência de Jair Bolsonaro.

“O Brasil, há muito, parece se apequenar diante do mundo, mas essa é outra história. A sensação de déjà-vu agora, no entanto, é candente. Não é a primeira vez que um acervo de importância histórica incontornável deixa o país, seja ele doado ou vendido mesmo”, escreve Martí, citando, entre outros exemplos, a venda da única pintura de Jackson Pollock existente no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, bem como a anunciada liquidação da colecção de arte do Banco Santos, falido, que está à guarda do Museu de Arte Contemporânea da USP. E lembra também o caso do Museu Nacional do Rio de Janeiro, destruído por um incêndio em 2018, ou, mais recentemente, a situação da Cinemateca Brasileira sediada em São Paulo, que anunciou a demissão de quatro dezenas dos seus funcionários, pondo em risco a salvaguarda das suas colecções.

“Mendes da Rocha não vê [na Universidade de São Paulo – onde é quase “sinónimo da instituição”, faz notar Martí ] condições ideais de armazenar seu acervo. Basta lembrar os inúmeros problemas de conservação da sede da escola desenhada por Vilanova Artigas e o facto de seu satélite em Higienópolis, um casarão dilapidado, ainda estar interditado aos alunos desde um projecto de restauro ter início”, comenta o jornalista, realçando que a presente decisão do arquitecto brasileiro não se deveu a questões de dinheiro.

“Mendes da Rocha se mostra preocupado com o destino de sua memória num país desmemoriado. A decisão de entregar o acervo a uma instituição com recursos adequados tem que ver com o seu desejo mais que compreensível de que a obra sobreviva aos atropelos e às intempéries do tempo”, conclui Martí.

Independentemente destas considerações, Paulo Mendes da Rocha nega que a sua decisão tenha sido motivada pela situação política do país. “Não teve nenhuma relação. Não considerei nada disso. O andamento deste processo, e desse acordo, foi-se desenvolvendo paulatinamente nos últimos dez anos”, garante.

Notícia actualizada com as declarações de Paulo Mendes da Rocha.

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