E a Justiça? A formação dos juristas e o famoso “tronco comum”
A ministração do ensino do Direito está longe de facultar aos jovens licenciados a adequada preparação para ingressar em qualquer profissão forense e judiciária.
Quando litigamos em tribunal é ostensiva a desfocagem relacional entre juízes e procuradores, dum lado, e advogados, por outro lado. Nem sempre foi assim.
Até à criação do Centro de Estudos Judiciários e à cultura que instilou nos novos magistrados, e, como mera coincidência, acompanhada pela vulgarização imparável da advocacia, tudo se transformou. Ora, tal desfocagem, gerou uma “natural “sobranceria das magistraturas, impregnada, as mais das vezes, de acrimónia e de agressividade, sempre a coberto da autoridade, mas nunca justificável pela titularidade dos deveres que lhes são inerentes.
Esta realidade tem muitas causas e será difícil dissecá-las todas. Mas comecemos pelo princípio, pela formação universitária.
Todos sabemos que a universidade tem de ministrar aos futuros profissionais – aqui do Direito – uma formação teórica, científica, que sirva de adequado magma para ingressar no mundo forense e judiciário. Mas também sabemos que a limitação dominante e quase monopolizada pela especulação teórica, não preenche os requisitos adequados para entregar um jovem licenciado em direito no complexo mundo da advocacia ou dos tribunais.
Na verdade, os curricula das faculdades, na sua vertente teórico-prática, acham-se de costas voltadas para o concreto mundo do foro, parecendo evidente que o modelo de Bolonha distorceu, quiçá definitivamente, a completa formação inicial de juristas, o que provocou o seu abandono por alguns países. Aliás, é útil agora relembrar que, mesmo no ensino secundário, se abandonou as disciplinas do latim e do alemão, ablação imperdoável (pelo menos para o latim).
Tudo isto para significar que a ministração do ensino do Direito, nos seus diversos patamares, está longe de facultar aos jovens licenciados a adequada preparação para ingressar em qualquer profissão forense e judiciária.
Já se disse que a colocação, face a face, as magistraturas, com percurso exclusivamente escolástico e académico, perante uma advocacia debilitada, dum lado, e o modelo autoritário emprestado pelo C.E.J., não poderia ter outro desfecho senão a já referida desfocagem relacional e, porque não dizê-lo, nada própria de um regime democrático.
Nos anos 80 e 90 do século passado, produziram-se milhares e milhares de licenciados em Direito, que, face à carência de saídas profissionais, acabaram por entrar no mare magnum da advocacia. Como se não bastasse a inflação de licenciados em direito, foi decidido criar a licenciatura em solicitadoria (sabe-se lá o que isso significa…), ao mesmo tempo que se atribuíram complexas competências aos “solicitadores de execução” (aqui promovidos a agentes de execução). Por esta via, desaproveitou-se o excesso de licenciados em direito que, com vantagem para todos, poderiam ter recebido tais atribuições.
Regressando ao ensino universitário, bem como aos seus curricula, torna-se patente que não têm quase conexão com a vida real, com o quotidiano mínimo das soluções legais que a vida em sociedade provoca em abundância. E aqui surgem diversas consequências.
Desde logo, face ao número de alunos, a formação inicial é tendencialmente mais teorizante, o que, só por si, não acarreta qualquer mal (mas garante os adequados créditos ao ensino privado). Contudo, onde nasce a séria amputação do ensino universitário (completo) é no desaproveitamento dos dois anos de mestrado, para imprimir um ensino de pendor iminentemente prático, em conexão com os Conselhos Superiores dos Juízes e do Ministério Público e a Ordem dos Advogados.
Na verdade, a formação inicial dos profissionais do foro dever-se-ia centrar nos 4.º e 5.º anos das Faculdades, onde, em conjugação com docentes universitários, magistrados e advogados se procuraria a adaptação à vida real e alcançar-se-ia o mais que desejado “tronco comum” na formação de profissionais do foro. Aí sim. Nessa via seria desejável um elevado grau de exigência e de rigor na selecção dos futuros magistrados e advogados.
De facto, nos três primeiros anos de ensino universitário justifica-se que se mostrem impregnados de formação teórica, mas, nos dois anos subsequentes, poderiam e deveriam ser preenchidos pelo predomínio da análise das decisões judiciais (da jurisprudência) o que habilitaria os recém-licenciados a abraçar a profissão e a especialização que mais desejassem, recaindo sobre o Centro de Estudos Judiciais e sobre a Ordem dos Advogados o encargo de ministrar a formação complementar própria de cada profissão.
Na verdade, por ora, o C.E.J. não passa de um “seminário” onde se elege a parte sã de uma maçã que convive com uma outra parte, debilitada e com menor preparação técnica, que é a advocacia.
Assistimos, hoje, nos tribunais, e por perversão genética do C.E.J., a uma definitividade da judicatura e a uma opacidade incontrolada do Ministério Público, que tem as adequadas excepções (e são muitas) inerentes à formação cívica dos magistrados, mas não resultam do ADN da formação que lhes é emprestada nos planos curriculares do C.E.J.
Como posteriormente tentarei demonstrar, o modelo de juiz que está surgindo, já se mostra sintónico com os valores próprios da Democracia Judiciária, o que vem sendo alcançado mais por força das reformas do direito adjetivo. Na realidade, a moderna tramitação impregnada de busca pela verdade material, tem refreado os ímpetos da deificação da função judicial, aproximando o Juiz das partes, o que é salutar.
Esta praxis adversarial, entre magistrados e advogados não se acha, curiosamente, tão viva entre as partes em conflito. Tudo isto porque a formatação das magistraturas se acha vocacionada para o exercício de um poder e, não tanto, para a missão última que é a administração da justiça, ou seja, para dirimir os conflitos, para alcançar paz social.
Estamos todos, cidadãos, profissionais e poder político, chamados a repensar a Justiça, também sob este ângulo, que se mostra crucial: o ângulo da Democracia Judiciária, preenchida por uma formação adequada, alterando, no sentido correspondente, a cultura jurídica dominante. Em vez de um poder ilimitado, uma função constitucionalmente justificada.
A justiça deve ser administrada em nome do Povo. Dito de outra forma; a Justiça não é a manifestação da vontade dos titulares do direito de decidir. É, antes, o resultado da atividade de uma “comunidade de trabalho” reunida em Tribunal para obter uma decisão “justa e em prazo razoável”.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico