O cenário quase distópico criado pela pandemia teve, na fase inicial, o efeito de nos devolver, de forma surpreendente, bens de valor incalculável: o ar, a luz, o espaço, o quase silêncio, o céu límpido e a água transparente.
De repente, foi como se tivéssemos tomado consciência que o mal, personificado pela pandemia, paradoxalmente, também era capaz de fazer o bem. Foi como se actividade humana, que tem estado em conflito aberto com o planeta, atentando contra os ecossistemas, tivesse levado uma lição nesses primeiros tempos de isolamento social.
Nos últimos anos muito se tem falado disso. Do ambiente, da ecologia, do aquecimento do planeta, da forma como vivemos um modelo de existência que parece insustentável.
A percepção antropocêntrica do mundo, que opera com base na monetização de qualquer coisa viva, conduziu-nos a esse ponto crítico. Hoje é consensual que é preciso superar as relações destrutivas que criamos connosco e com aquilo que nos envolve.
Foi assim que, durante o isolamento social, algumas notícias encorajadoras foram sendo dadas, relatando precisamente que tinha existido uma queda dramática na poluição, que a água nos canais de Veneza, sem turistas e barcos, se havia tornado clara e nítida, ou que animais que outrora não se atreveriam a aproximar-se de zonas urbanas, haviam circulado pacificamente em cidades americanas ou australianas.
Por vezes esquecemo-nos que não existimos nós, os seres humanos, de um lado, e a natureza, do outro. Nós somos também natureza. Para abraçar uma nova realidade precisamos de mudar a nossa percepção de um mundo feito apenas para nós, para uma rede de vida inter-relacionada, onde coabitam todos os seres do universo, humanos, vegetais ou minerais.
Podemos aprender muito com recurso à tecnologia mais avançada, mas também podemos retirar ensinamentos da forma como numa floresta se processa a cooperação, se fomenta a diversidade, a comunicação eficiente ou a distribuição de água, sem gerar desperdícios.
O planeta é um organismo vivo, no qual a individualidade e a conectividade entre todas as espécies e formas de existência, criam condições para a vida acontecer.
Hoje vivemos uma mudança única, naquela que pode vir a ser uma eventual oportunidade evolutiva de consciência ecológica. Mas é preciso não esquecer o que vivenciámos.
Claro que ninguém deseja que o aparelho produtivo pare quase por completo, como aconteceu recentemente, para voltarmos a ver o céu nítido e a água cristalina. Mas o que sucedeu fez-nos ver que não estamos condenados a perseguir o mesmo caminho que nos trouxe até aqui. Há outros horizontes. Existem outras possibilidades. Há tanto, tanto, mar.