E a Justiça?
Não é conveniente abordar o mundo da Justiça sob a perspetiva comumente associada à “Crise da Justiça”. Não é disso que se trata.
Ao longo das últimas décadas consolidaram-se opiniões sobre justiça. Está mais que adquirido que os Portugueses estão seguros que ela é complexa e opaca, mesmo inacessível, em suma, entre o Povo e a Justiça consolidou-se uma visível distância social e cultural que, com o tempo, se vai agravando e se vai penosamente arrastando, sem inversão à vista.
Manda a verdade que se diga que os responsáveis políticos, todos eles, evitam abordar os vários temas que caracterizam o mundo do Judiciário. Percebe-se, de facto, que o Governo padeça de um especial travão político que o impede de tecer considerações (negativas ou não) sobre o funcionamento desta função do Estado. Mas já não se aceita, com a mesma serenidade, que a Assembleia da República e, de certa forma, o Presidente da República, se auto-limitem em homenagem ao princípio da separação de poderes, na sua versão extremista e mais que ultrapassada.
A abordagem de todos e cada um dos “Capítulos” que informam a Justiça pode (e deve) ser própria dos Profissionais e de cada um dos seus governos, mas também pode (e deve) ser obrigação cívica e política dos cidadãos (que devem organizar-se para atingir tal desiderato).
Não podemos esquecer que a Justiça é administrada em nome do Povo e por via dos Tribunais (Art.º 202/1 da Constituição). Se assim deveria ser – e assim não é – parece que os responsáveis políticos deverão fazer recair a sua atenção sobre o momento que passa e sobre todas e cada uma das causas que provocam a mais que adquirida inversão de valores que leva o nosso Povo a olhá-la como complexa, opaca e de inacessível compreensão.
De facto, a representação social dos Agentes da Justiça, de todos eles, é assaz negativa e, no mais modesto entendimento, urge radiografar os ciclos históricos e aquele em que estamos inseridos, com a finalidade de dissecar as perversões historicamente adquiridas, agora impregnadas de profundas alterações emergentes da revolução tecnológica, mas acima de tudo, pela imprescindível antevisão das sequelas sociais, económicas (laborais, acima de tudo) e políticas que a pandemia universal arrastará.
Perante estes dois ingredientes, impõe-se agora, mais que nunca, a interpelação: E a Justiça?
Desde logo, que transformações sofreu ao longo dos vários Processos Históricos e que abalo sofrerá perante a erosão do tempo que agora passa. Que metamorfose implicará – se é que implicará – o abalo social, económico e político, emergente da pandemia universal?
Os processos históricos (que ora relevam e que merecem a nossa atenção) abarcam quatro fases.
A primeira centra a sua atenção no Reinado de D. Maria II e o Rei D. Luís I, com especial e curiosa atenção na transição da Monarquia Liberal para a I República, igualmente liberal.
A segunda, exigirá que observemos o impacto do 5 de Outubro no mundo da Justiça.
A terceira leva-nos à rutura imposta pelo Estado Novo e à caracterização da violência do modelo fascista na construção de uma Justiça autoritária perante o Povo, mas politicamente dependente.
A quarta reflexão, a mais sensível, visa apurar o impacto do 25 de Abril nas instituições forenses e judiciárias.
Como se tal tarefa não bastasse, vivemos, como se disse, numa só geração, as abruptas transformações tecnológicas, pois abandonámos a máquina de escrever e o papel selado e, por fases, entrámos no monopólio das comunicações eletrónicas. O legislador vê-se atónito e não consegue acompanhar as exigências da época que atravessamos.
Na verdade, a censurada avidez reformista e legislativa é compreensível e, de certa forma, tem minimizado o progressivo distanciamento da Justiça face ao nosso Povo. No entanto, a imagem criada em torno dos grandes processos criminais (esquecendo que se acham pendentes quase um milhão de processos), afunilou a cultura judiciária no Direito Penal e, mesmo essa imagem, não é própria, nem adequada ao universo dos processos criminais.
Voltando atrás, parece visível que o distanciamento social e cultural, bem como a perda de legitimidade do poder judicial aos olhos dos Portugueses tem, provocada por si, uma miríade de causas que convém e urge dissecar. Na verdade, não é conveniente abordar o mundo da Justiça sob a perspetiva comumente associada à “Crise da Justiça”. Não é disso que se trata.
O que urge identificar, em primeira leitura, são os elementos determinantes e os momentos dominantes na caracterização das bondades e das perversões da administração da Justiça.
Assim: a formação inicial dos juristas; os processos de recrutamento e formação inicial e permanente de todos os profissionais do foro; os governos dessas profissões, desde os Juízes, os Procuradores, Advogados e Oficiais de Justiça, sem esquecer os Agentes de Execução, o Notariado e os Registos.
Na verdade, a extrema sensibilidade dos auto-governos, cuja profunda análise urge afrontar e aproveitar para verificar se a hiper-corporativização das profissões judiciárias se compadece com a separação do Estado face à Justiça. A extrema delicadeza desta temática leva-nos a não alcançar os limites da independência do judiciário face à soberania do Estado, confundindo-se a independência dos Juízes e a autonomia técnica do Ministério Publico, com a absoluta separação de poderes.
Na verdade, a independência entre Magistraturas e o Governo, todos a desejamos e a percebemos, mas não alcançamos a independência dos Tribunais (única categoria Constitucional) face à Assembleia da República e, decerta forma, perante o Presidente da República. Todas as independências são estradas com dois sentidos. Contudo, é consabida a hiper-independência dos Tribunais e seus atores face à Assembleia da República (onde reside o núcleo central da Democracia) e ninguém conhece qualquer momento de responsabilização dos agentes da justiça e seus Governos face ao Parlamento.
Tudo isto, todos os temas, merecem serena reflexão e rigoroso debate. É o que nos propomos apresentar.
Voltaremos a este e outros temas, mas parece inexorável que a já referida radiografia do Judiciário comece pela organização judiciária, pela formação inicial dos juristas, pelo processo de recrutamento de todos eles, pela tributação e pelo acesso à justiça de todo o Povo, em suma, esquecendo o inútil e perturbador chavão da “crise da justiça” (pois não é disso que se trata).
Vamos refletir sobre cada tema relevante e, só então, encontraremos as soluções que aproximarão os Portugueses da sua Justiça.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico