Estamos a ver a História

Aprendemos a lidar com o não saber e, de algum modo, a encontrar alguma pacificidade nessa potencial inquietação. É o que há. E não há fuga.

Há uma semana, chegaram-nos imagens da poderosa instalação, com cruzes e balões vermelhos, que a ONG brasileira Rio de Paz fez na praia de Copacabana, como protesto e homenagem aos quase 100 mil mortos da covid-19 no Brasil. Impressionante, tanto o número de mortos que a pandemia fez, como a visualidade da instalação. Pela Europa, cá vamos tentando retomar a vida, como conseguimos. Ainda não sabemos o que nos espera, mas agora já sabemos mais alguma coisa, e não apenas do ponto de vista científico, mas também no que diz respeito aos nossos recursos psicológicos e emocionais para uma eventual segunda ou terceira vagas. Quer dizer, aprendemos a lidar com o não saber e, de algum modo, a encontrar alguma pacificidade nessa potencial inquietação. É o que há. E não há fuga.

Como seria expectável, o período de confinamento começou logo a evidenciar assimetrias imensas. Naturalmente que terá sido menos mau — e continuará a sê-lo — passar confinamentos em casa com varandas e piscinas. Por oposição, foi impressionante ver as pessoas sem-abrigo pelas ruas de Lisboa. Sempre aí estiveram, claro, mas com a população em casa e com a exposição à doença, percebeu-se ainda mais este flagelo. O desemprego, a quebra do PIB — sobretudo no turismo, o que exprime, desde logo, a (expectável) impossibilidade de uma economia aí se encostar —, a condição de isolamento sem fim à vista dos nossos velhos em lares, a falta de rendimentos em tantos sectores, de entre estes, com destaque para o da cultura, a subida da violência doméstica, a autocracia a crescer, as complicações em bola de neve. A crise e a solução passam, a seu modo, por todos. Não há ilhas nisto.

No meio de toda esta complexidade, há algo que se poderá caracterizar como único. Trata-se de sentir que se está, de facto, a viver e a ver a História acontecer. E não apenas a contá-la ou a lê-la num livro. A História é feita do que já foi, como sabemos. E é sempre essa a sensação que ela nos traz, deixando a actualidade para outros departamentos, como a sociologia ou o jornalismo. Neste momento, percebemos que a História se está a fazer no agora. A propósito desta ideia, mas também de todas as problemáticas ligadas ao impacto do Homem no clima e nos ecossistemas, conectadas, por sua vez, com os fenómenos pandémicos, reportamo-nos ao conceito de antropoceno — na verdade, antropocénico, mas o mais divulgado é o primeiro —, inicialmente difundido, nos anos 90, pelo cientista Paul Crutzen, e que resumidamente adverte para o resultado do aquecimento global, para a escassez de recursos naturais e para as consequências graves da intervenção do ser humano na natureza. Esta realidade tem implicações nos discursos artísticos, nas obras de arte e nas exposições. Uma das primeiras exposições a porem em causa o capitalismo industrial foi Fragile Ecologies: Contemporary Artists’s Interpretations and Solutions (The Queens Museum of Art, Nova Iorque, 1992).

Mas há aqui algo mais, que vai além da ligação entre o impacto das acções do Homem na natureza, pandemias e arte. De facto, e em larga medida também devido à arte do antropoceno, estamos numa mudança radical nas condições de visualidade, ou seja, passa-se da representação para o estar presente. Isto não é apenas uma imagem; isto é realmente assim, e é representativo de um momento único que, ele próprio, já é História agora. São espantosas as imagens — artísticas, poéticas, denunciadoras — das ruas vazias, da Praça de S. Pedro vazia, das pessoas hospitalizadas, dos líderes políticos, dos trabalhadores, etc. Estamos a ver a História. Com isto, chegámos a Agosto. E a vida anda aí. Apesar de tudo.


Historiadora e crítica de arte contemporânea, investigadora do CIEBA (Faculdade de Belas-Artes, Universidade de Lisboa)

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