A solidão voluntária de um adolescente
Um livro que poderá conquistar leitores jovens, por se identificarem com o protagonista; mas também adultos, por lhes dar um breve vislumbre do que se passa na cabeça (e na vida) de um adolescente de hoje.
Miguel escolheu ficar sozinho em casa durante parte das férias de Verão. Namoro interrompido, amigos num festival de música e família longe. Era mesmo isso que ele queria. Ou talvez não.
Numa imagem inicial de página inteira, vê-se um jovem com ar apático, semideitado num sofá e encostado a uma almofada. Em primeiro plano, as plantas que terá de regar todos os dias durante a ausência dos pais. Isso e estudar o Código da Estrada serão as únicas obrigações nos próximos dias de solidão voluntária. Um desejo de que chega a duvidar.
A história de Desvio começa com a despedida da mãe e uma lista de recomendações: “Não andes de tronco nu na varanda”, “não ponhas o telemóvel no silêncio”, “não te esqueças das plantas”. Há ainda um pedido em forma de pergunta: “Vais à varanda dizer adeus?”
Miguel vai. Antes, faz-nos saber: “A minha mãezinha olha para mim como se estivesse à espera de qualquer coisa que eu não sei o que é.” Mais: “As pessoas estão sempre à espera de qualquer coisa que eu não sei o que é.”
Somos também informados de que o rapaz e o pai não se falam há duas semanas. “Nunca vi uma pessoa tão zangada como o meu pai. Eu se calhar também sou assim. Ando há 18 anos nisto.”
Na varanda, já sozinho e depois de acender um cigarro, resume em pensamento: “Tem sido um ano de merda. O Rúben morreu. Não passei a Matemática. Fui operado ao joelho. E a Susana pediu-me um tempo.”
Um turista na própria vida
Ana Pessoa, que assina também com Bernardo P. Carvalho O Caderno Vermelho da Rapariga Karateca (2012), Mary John (2016) e Supergigante (2017), revela mais uma vez sensibilidade para as inquietações e dúvidas dos jovens a caminho de serem adultos.
O relacionamento com o grupo, a sexualidade, as dependências, a escolha do futuro, as contradições do presente, a morte. Sobre tudo isto reflecte o protagonista de Desvio, ao mesmo tempo que nos remete para episódios anteriores por ele vividos, em busca clara de autoconhecimento e de sentido para a existência.
Uma introspecção que não o desliga nem afasta completamente do mundo. Vai ao cinema, passeia-se pelas ruas da cidade. (Lisboa? Muito provavelmente. Podia ser outra, não interessa para o essencial da narrativa.) Fotografa-a. “Pareço um turista na minha própria vida.”
Chega a duvidar da sua escolha por um período de solidão: “Por um lado, não quero que este tempo acabe. Por outro, apetece-me que qualquer coisa aconteça. Qualquer coisa genuína. Invulgar. Fotogénica.” Como as que os turistas procuram.
Miguel chegará pelo menos a uma conclusão relativamente à namorada, Susana. E que justifica o título. A história deles terminou. Dir-lhe-á “este tempo foi um desvio”, “nós fomos um desvio”. Também acabará por encontrar no cinema um rumo para o futuro próximo. A mãe fica satisfeita, já o pai…
Eficaz o recurso, aqui e ali, às regras, normas e sinais de trânsito, assim como às trocas de SMS e aos comentários nas redes sociais. Aplauso ainda para a tia do Miguel, uma personagem bastante verosímil e com nítida empatia com o rapaz. Um elogio às tias, muitas vezes com mais facilidade de aproximação aos jovens do que as mães, sempre tão preocupadas.
Talvez fosse preferível substituir a expressão “lixem-se” — que ambos usam sobre “as pessoas e os seus planos de merda” — por “que se lixem”. Mais coloquial e usual. Também “a minha mãezinha”, como o Miguel se refere à mãe, nos soa forçado, mesmo que intencional para reforçar a ideia de um adulto ainda a caminho. Um livro que poderá conquistar leitores jovens, por se identificarem com o protagonista; mas também adultos, por lhes dar um breve vislumbre do que se passa na cabeça (e na vida) de um adolescente de hoje.
Desvio, tal como o protagonista, percebe melhor as pessoas tristes do que as pessoas felizes.
Quadradinhos que são… triângulos
Para a conquista dos leitores de diferentes idades muito contribui Bernardo P. Carvalho (ilustrações), que consegue criar com talento múltiplas atmosferas. Ora nos põe na calma e entediante casa do rapaz, ora nos leva para o frenesim das ruas da cidade, ora nos mergulha em jogos de computador, sonhos e salas de cinema. Diferentes ritmos, cores e escalas que prendem o olhar e a atenção. Muito bom.
Mais ainda quando há pouco ou nenhum texto para ler, como nas pranchas das rotinas domésticas ou na cena de namoro na praia. Satisfaz-nos a forma como o ilustrador desenha os corpos, seja expressando desejo, tédio ou tão-só preguiça.
Gostamos também dos quadradinhos (vinhetas) que são… triângulos ou losangos e das imagens de página inteira, como a da Susana a fazer bungee-jumping ou a do Lobo Mau a abraçar o Chapeleiro Louco. Um processo que se passeia entre a BD e a novela gráfica.
Bernardo P. Carvalho, Prémio Nacional de Ilustração em 2009, escolheu pôr Miguel em Lisboa, ainda que nada sobre isso seja explícito na narrativa. Ser uma cidade turística serve o propósito da história e o leitor consegue identificar lugares como Cais do Sodré, Rua Cor-de-Rosa, Avenidas Novas, miradouros com vista para o rio e para porta-contentores, entre outros.
Miguel passava as aulas a desenhar monstros e adormecia de cada vez que pegava no manual. Suspeitamos de que não terá conseguido passar no exame de Código da Estrada.
’Tás a ler? é uma rubrica (quase sempre) sobre livros para adolescentes e jovens adultos. Daremos preferência a autores portugueses. Porque sim.