O “momento multibanco” da União Europeia
1. Num discurso efectuado a 17/07/2020, nas vésperas do Conselho Europeu extraordinário sobre Quadro Financeiro Plurianual (QFP) e o Plano de Recuperação para a Europa, o Presidente do Parlamento Europeu, David Sassoli, falou na necessidade de “não reduzirmos a União Europeia a uma caixa multibanco”. Este é talvez o melhor epíteto que poderíamos encontrar para a discussão orçamental: o “momento multibanco” da União Europeia. Para além dos avisos já gastos de que seria o fim União Europeia se não houvesse acordo — já lemos e ouvimos isto tantas vezes que se tornou uma retórica completamente fútil e vazia —, o que esteve em causa são normais (e sublinho a palavra “normais” em democracia) divergências e lutas políticas numa discussão orçamental desta envergadura. É necessário notar que, por um acaso de circunstâncias, se juntaram dois temas intrinsecamente difíceis: as negociações do Quadro Financeiro Plurianual (QFP 2021-2027) — qualquer negociação anterior de um orçamento de longo prazo sempre foi, à partida, objecto de posições divergentes entre os Estados-membros — e o Plano de Recuperação para a Europa devido ao impacto desastroso da pandemia da covid-19 na economia. Assim, o mais importante é compreendermos bem a complexidade europeia e dos seus processos político em vez de nos perdermos com a retórica inútil do fim da União Europeia e em analogias históricas discutíveis.
2. Em Maio de 2020, na altura da proposta franco-alemã e do Plano da Comissão, as referências grandiosas a momentos do passado e a (supostas) analogias históricas, não faltaram. Alguns viram aí travessia do Rubicão feita por Angela Merkel, levando consigo atrás a União Europeia — um ponto de não retorno tal como ocorreu Júlio César no século I a.C., que ignorou a proibição do Senado e prosseguiu com os seus exércitos em direcção a Roma. Agora Angela Merkel e Emmanuel Macron levavam a União em direcção a uma imparável mutualização/federalização da dívida. Todavia, o resultado dessa travessia do Rubicão foi provocar a segunda guerra civil da República Romana, o que, se usarmos plenamente a analogia histórica, não augura nada de bom para a União Europeia.
Outros (re)descobriram as virtudes de Alexander Hamilton (um nome obscuro para muitos europeus), o primeiro Secretário do Tesouro/Ministro das Finanças dos Estados Unidos da América (EUA) em finais do século XVIII. Sob a sua iniciativa, a dívida da guerra da independência das antigas colónias britânicas foi federalizada. Na União Europeia estaríamos agora perante um “momento halmiltoniano” de mutualização / federalização da dívida. Para além das enormes diferenças entre os EUA de finais do século XVIII e a União Europeia do século XXI, aparentemente ninguém se lembrou na Europa que Alexander Hamilton é também o mentor do proteccionismo norte-americano — um pioneiro do America first — e que a “guerra de tarifas”, tão ao gosto de Donald Trump, está próxima das teses de hamiltonianas. O argumento proteccionista clássico está bem delineado no Report on Manufactures/Relatório sobre as Manufacturas de 1791.
3. Analogias históricas à parte, com actual grau de integração da União Europeia — uma união económica e monetária — as questões políticas internas dos Estados-membros projectam-se, de forma natural, na política europeia. Há vários grupos de Estados, institucionalizados ou informais, que se têm criado dentro desta, os quais são hoje uma parte crucial dos seus processos políticos. Provavelmente, ainda não são bem percebidas as múltiplas implicações que daí resultam em toda a sua amplitude. Alguns, seduzidos pela retórica de Emmanuel Macron, imaginam a União Europeia ainda nos “bons velhos tempos” do eixo franco-alemão, uma espécie G2 constituído pela França e pela Alemanha. É verdade que esse é um grupo matricial da União Europeia, mas também já se alterou substancialmente. Originalmente, nos anos 1950, o poder estava de facto na França. A Alemanha secundava quase sempre, sem questionar, as posições francesas. (A Alemanha pagava, a França mandava e os outros eram quase sempre “bons alunos”, ou seja, alinhavam sem mais.)
Hoje a realidade é outra, sendo clara a predominância germânica (e de Angela Merkel), apesar dos esforços de Emmanuel Macron em manter a relevância do passado. Mas, para além do G2, há realidades cada vez mais importantes e complexas na política europeia, como muitos terão descoberto, talvez com grande surpresa, sobretudo aqueles onde prevaleceu o quadro de wishful thinking de que a saída britânica seria um “regresso ao paraíso” primordial de concórdia da União. Só que isso nunca existiu, como lembra facilmente o episódio do abandono unilateral das reuniões do Conselho, ocorrido entre 1965 e 1966, efectuado pela França do general de Gaulle. E na altura os britânicos não tiveram a culpa, pois nem eram membros. Hoje não faltariam Cassandras — não as da mitologia clássica grega, mas aquelas que logo aparecem sempre que ocorre uma crise ou dificuldade política maior, profetizando, com aura de seriedade, o fim da União Europeia.
4. Nesta discussão orçamental emergiu de rompante o “Grupo dos Frugais” 4+1 (Holanda, Áustria, Suécia, Dinamarca) mais a Finlândia, país que mostrou grande proximidade de posições com esse grupo. São, grosso modo, pequenas ou médias economias ricas do Norte da Europa que partilham em comum similar visão orçamental — muito contida, ou muito egoísta, consoante as perspectivas —, sendo todos contribuintes líquidos do orçamento da União. No pólo oposto esteve o grupo dos “Amigos da Coesão”, 15 Estados beneficiários líquidos dos orçamento europeu (Bulgária, República Checa, Chipre, Estónia, Grécia, Hungria, Letónia, Lituânia, Malta, Polónia, Portugal, Roménia, Eslováquia, Eslovénia e Espanha), do Sul, do Centro e do Leste europeu, a grande maioria pequenas ou médias economias também.
Num outro plano posicionou-se o Grupo de Visegrado (Polónia, Hungria, República Checa e Eslováquia), uma aliança política que marca sobretudo as diferenças desses 4 Estados face aos valores liberais do Ocidente europeu, como evidencia ruidosamente o Primeiro-Ministro da Hungria, Viktor Orbán. Há ainda a chamada “Nova Liga Hanseática” (Dinamarca, Estónia, Finlândia, Irlanda, Letónia, Lituânia, Holanda e Suécia), um grupo informal de 8 Estados da Europa do Norte que tendem a ter pontos de vista similares nas discussões sobre a arquitectura da união económica e monetária. Há um bom exemplo recente da sua influência. Os membros desse grupo que fazem parte da Zona Euro tiverem um papel decisivo na eleição do Ministro Irlandês das Finanças, Paschal Donohoe, para o seu presidente, derrotando a espanhola Nadia Calviño, apoiada pelo G2 e por alguns dos “Amigos da Coesão” como Portugal.
5. Para compreender as divergências políticas à volta do “momento multibanco” da União Europeia é necessário olhar para a política interna dos protagonistas das negociações sobre QFP e o Plano de Recuperação para a Europa mostra isso. O Sul da Europa é em geral o mais afectado pela pandemia, mas também tem governos politicamente frágeis. Portugal com um governo minoritário do Partido Socialista; a Espanha com um governo de coligação dispondo de uma maioria parlamentar à tangente, formada pelo PSOE e Podemos e que depende crucialmente do apoio de partidos nacionalistas do País Basco e da Catalunha; a Itália com um governo de coligação frágil entre o M5S e o Partido Democrático, chefiado por Giuseppe Conte, que até agora conseguiu resistir à crónica instabilidade política italiana. (No Sul, ironicamente, a Grécia nesta altura tem o governo mais estável, com uma maioria da Nova Democracia). Dada sua fragilidade política — e as enormes dificuldades económicas que se antecipam devido ao brutal impacto da covid-19 na actividade económica — estes governos, mais do que outros, dependem crucialmente da União Europeia. A generosidade dos apoios financeiros da União Europeia é, assim, duplamente crucial: para lidarem com a crise económica e para se manterem no poder.
A favor destes países jogou o facto de na Alemanha, que vai ter eleições parlamentares em Setembro ou Outubro de 2021, Angela Merkel não concorrer a chanceler. Assim Angela Merkel pode desligar — muito mais do que faria noutras circunstâncias —, a sua acção europeia da política interna. Contra estes países jogou o facto de na Holanda irem ocorrer eleições parlamentares em Março de 2021 e o actual primeiro-ministro — Mark Rutte — ser novamente candidato. Ocorre ainda que na Holanda o eleitorado é largamente favorável à redução das contribuições do país para a União Europeia, ou seja, essa vontade vai além da sua área política de centro-direita. Esta é, aliás, uma característica bastante transversal ao eleitorado da generalidade dos países (ricos) do Norte da Europa. Ao contrário da maneira usual de retratar a política da União Europeia no Sul da Europa — que vê logo nestas divergências políticas graves anomalias de solidariedade — estas são divergências normais tendo em conta a heterogeneidade europeia e a luta política subjacente a qualquer processo político democrático.
6. Com o acordo político de 21 de Julho de 2020 obtido no longo Conselho Europeu — que alterou, em maior ou menor grau, consoante as matérias, as propostas anteriores da Comissão sobre o QFP e o Plano de Recuperação da Europa —, todos puderem reclamar vitória. Como habitualmente, cada um acentua a faceta que mais lhe convém. Do lado dos beneficiários líquidos como Portugal, Espanha e Itália, o que se vai receber da União, enaltecendo a solidariedade europeia e proclamando o seu europeísmo; do lado dos contribuintes líquidos, como a Holanda, a Áustria, a Suécia e a Dinamarca, o que não se vai pagar — os reembolsos obtidos — e os mecanismos de condicionalidade introduzidos no acesso aos fundos (incluindo aqui a nova possibilidade de parar temporariamente o processo por sérios desvios de um Estado-membro em relação ao cumprimento satisfatório dos objectivos e metas relevantes, levando ao assunto a discussão do Conselho Europeu — veremos, na prática como isso será usado); e, ainda, do lado do Grupo de Visegrado, o quase afastamento da condicionalidade ligada ao Estado de Direito, que ficou reduzida a uma vaga declaração de princípio.
Olhando, todavia, para os objectivos e valores descritos inicialmente no Plano da Comissão e para as diversas alianças negociais, há interrogações interessantes que ficam no ar. Uma interrogação importante que não tem sido colocada é sobre a razão pela qual a França e Alemanha — estando ambas empenhadas em manter a lógica e valores iniciais do Plano da Comissão — não se dispuseram a aumentar as suas contribuições para o orçamento da União Europeia, substituindo-se, no todo ou em parte, ao valor que Holanda, Áustria, Suécia, Dinamarca e também Finlândia não quiseram pagar (segundo estes, não podem pagar). Assim, provavelmente seria possível manter o nível de subvenções inicial, ou seja, de apoios financeiros sem necessidade de reembolso e evitar a condicionalidade introduzida sob pressão do Grupo dos Frugais.
7. Como já notado, na realidade o Plano de Recuperação da Europa da Comissão até foi bastante alterado. Os 500 mil milhões de Euros de subsídios e 250 mil milhões de empréstimos, passaram para 390 mil milhões de Euros de subsídios e 360 mil milhões de empréstimos. Para os mais distraídos, continuou a poder falar-se no mesmo número global sonante — um slogan de 750 mil milhões de Euros —, como se fosse a mesma coisa. Claro que não é. Mas é necessário notar ainda que a pergunta anteriormente colocada é muito incómoda para a Alemanha, pois é para onde toda a gente se vira a nível europeu, quando é necessário um apoio financeiro de alguma dimensão, como mostrou a crise anterior. Para a França, ninguém olha da mesma maneira pois tornou-se já muito evidente que não tem essa capacidade, nem poder. Sob a aparência de um paritário G2, há uma lógica muito diferente de ambos os Estados, com primazia para a Alemanha, apesar de na superficialidade poder não ser óbvia.
Com Angela Merkel, a Alemanha conseguiu a notável proeza de ficar com uma impecável imagem europeísta e ser um dos maiores beneficiários da dureza negocial de Mark Rutte e dos seus colegas frugais. Os números finais acordados são reveladores: é o país que tem o maior desconto orçamental, mantendo os seus 3,671 mil milhões de Euros de reembolso/ano (o segundo é a Holanda que aumentou, de facto, o seu reembolso para 1,921 mil milhões de Euros/ano; a Suécia, a Áustria e a Dinamarca também o conseguiram). Por outras palavras, passando quase despercebida, a Alemanha, à boleia do Grupo dos Frugais, irá ter em 2021-2027 um total reembolsos de 25,697 mil milhões de Euros do orçamento europeu. Aspecto importante a reter, a França — país com o qual supostamente estaria em total sintonia —, queria acabar com tais reembolsos do orçamento europeu. Vejamos melhor a hábil estratégia alemã.
8. Ao contrário de Emmanuel Macron, que procura quase sempre o protagonismo, como também aqui se viu, e se envolveu em tricas políticas desnecessárias, Angela Merkel foi muito mais prudente, e, sobretudo, politicamente inteligente. Para lidar com a actual crise gerada pela pandemia da covid-19 a nível europeu, Angela Merkel percebeu que precisava de Emmanuel de Macron para a coreografia política. O plano inicial de um fundo recuperação de 500 mil milhões de Euros surgiu num timing perfeito para a Alemanha: retirou o pesado ónus que estava a ter na opinião pública europeia a decisão do Tribunal Constitucional Federal alemão sobre a compra de dívida pública pelo Banco Central Europeu (BCE). Para além disso, como notado, Angela Merkel não é candidata a novas eleições e podia ignorar os críticos internos — que são sobretudo da área do seu próprio partido e mais à direita —, dispondo-se a aceitar, a título excepcional, um certa dose de mutualização da dívida a nível europeu. Ao mesmo tempo, delegou a tarefa de “maus da fita” ao Grupo dos Frugais, deixando a atitude de dureza negocial sobretudo para Mark Rutte, postura que provavelmente desagradou muito menos a Angela Merkel do que muitos imaginam (continua, no essencial, próxima da lógica orçamental alemã). Não foi por acaso que, quase sempre se manteve discreta no Conselho Europeu, como os mais atentos notaram.
Quanto à tarefa de enfant terrible europeísta ficou entregue a Emmanuel Macron, deixando-o acreditar que o seu país ainda mantém a influência Europa, como nos tempos de Charles de Gaulle ou de François Miterrand. É bom para a imagem externa da Alemanha deixar esse protagonismo, com pouco poder real, para a França, pois os estereótipos do nazismo reemergem com facilidade, como a crise anterior da Zona Euro mostrou. (Basta lembrar as vezes que Angela Merkel foi caricaturada como nazi, em especial devido à sua dureza negocial com a Grécia, que desenterrou também a questão das indemnizações da II Guerra Mundial não pagas pela Alemanha).
Mas tudo isto poderia ser motivo para um enredo de uma nova obra de ficção do escritor austríaco Robert Menasse, que já publicou A Capital (trad. port. Dom Quixote, 2019), uma imperdível sátira sobre meandros da política e burocracia europeia, com imenso humor à mistura. Agora há um novo título: “o momento multibanco da União Europeia”.