Era tão fácil deixá-lo morrer
Passei a noite inteira a chorar, e é estranho dizer isto depois de mais de dez missões em cenários de guerra. Chorei porque senti muita dificuldade em sentir que ali estava um ser humano.
Era tão fácil deixá-lo morrer. Era tão mais fácil. Era só mais um e ninguém está a contar. E se estiverem a contar quanto é que vale uma vida diluída em milhares de vidas perdidas por esta guerra? Estou cansado. Estou exausto na verdade. Noites mal dormidas com o calor, com o barulho das kalashnikovs e com uma merda de um colchão que me faz doer as costas.
Eu sei que se eu tentar, se eu me esforçar para lhe salvar a vida e depois ele me morrer nas mãos, vai-me doer muito mais. E eu estou farto de sofrer. Estou farto. Já me morreram demasiados nas mãos. Eu já vi muita coisa, tenho uma capa grossa, às vezes até acho que sou frio demais, mas estou farto de sofrer pelos que me morrem nas mãos, foda-se. Estou farto! E era tão fácil apenas deixá-lo morrer.
Estamos no Mar Vermelho na costa Oeste do Iémen, a escassos quilómetros da cidade de Hodeidah onde os confrontos desta guerra civil absolutamente desumana, têm encontrado a sua expressão mais violenta. O nosso serviço de urgência ficou inundado de feridos. Um bombardeamento como tantos outros atingiu uma casa e matou quase toda a família. Crianças, adolescentes, homens e mulheres debaixo dos escombros. Sobrou este rapaz de 14 anos. Passei a noite inteira a chorar, e é estranho dizer isto depois de mais de dez missões em cenários de guerra. Chorei porque senti muita dificuldade em sentir que ali estava um ser humano. Parecia-me um pedaço de carne. Emocionei-me ao sentir que estava no limite de perder as minhas emoções. Está inconsciente com um tubo na traqueia para respirar, tinha dois drenos torácicos, uma das pernas amputadas pela bomba e na outra uma pinça enorme na artéria femoral, e duas transfusões de sangue em curso.
Tinha passado num pequeno hospital sem capacidade cirúrgica, mesmo nas linhas da frente, onde lhe fizeram o que achavam que tinham de fazer para lhe salvar a vida antes de o transportarem até nós. Peço a um enfermeiro iemenita para o ventilar enquanto avalio as diferentes lesões traumáticas. Neste momento o cirurgião australiano extremamente experiente diz-me ao ouvido: “Ele vai morrer de qualquer das formas!” Ele queria que eu virasse as minhas atenções para todos os outros feridos menos graves que tínhamos de operar. Era muito possível que ele tivesse razão. Mas eu tinha de ter uma boa razão para o deixar morrer. Quase que queria que ele tivesse razão. Era tão mais fácil deixá-lo morrer.
Já me morreram muitas pessoas nas mãos, mas nunca por preguiça. Avalio-o cuidadosamente. Não me parece que tenha um traumatismo craniano relevante, nem lesão da coluna/medula. Tem um traumatismo torácico que eu acredito conseguir gerir. Na cavidade abdominal por sorte não tem nada. Perdeu uma perna por amputação traumática pelo meio da coxa, e a outra perna está sem irrigação sanguínea e em risco de se perder. Partilho a minha leitura com o cirurgião e peço-lhe com carinho que lhe tentássemos salvar a vida, e lhe tentássemos salvar a perna. Foram seis ou sete horas de cirurgia. E o cirurgião foi incrível e salvou-lhe a perna e eu passei dias e noites a lutar para lhe salvar a vida.
Três semanas mais tarde, no final da minha missão passei por Aden, uma cidade incrível repleta de história, cultura e cujo desenho montanhoso em cima do Oceano Índico me leva a pensar que é o Rio de Janeiro das Arábias. Vou visitar o rapaz que tinha sido transferido para reabilitação, colocação de prótese na perna e recuperação da mobilidade. Eu quero ficar amigo dele, quero que ele sorria para mim. Esforcei-me tanto para lhe salvar a vida, acho que era o mínimo que merecia. Mas ele nem me reconhece, pois poucas vezes me viu em pleno da sua consciência, e parece-me triste. O que eu posso ler dele é tristeza. Ele parece-me muito triste.
Eu estive a trabalhar como nunca, deixei a minha mãe a chorar no aeroporto, lutei para ser fiel aos meus princípios e perdi vidas, nas minhas mãos sob a minha responsabilidade, de recém-nascidos, de mulheres após o parto, de muitos feridos de guerra, tudo o que eu mais queria era ver este rapaz, por quem eu tanto lutei, a sorrir. Quero muito vê-lo feliz. Mas em que estou eu a pensar? Ele está a mais de 600 quilómetros da sua cidade, quase toda a sua família morreu naquele bombardeamento, ele perdeu uma perna e será um incapacitado para todo o sempre num país onde morrem aos milhares à fome e à bomba. Que razões teria ele para estar feliz? Saem-me da boca todos os palavrões da lista. Fico de rastos por ver este miúdo tão triste.
Tinha sido tão fácil deixá-lo morrer. Tinha sido muito mais fácil deixá-lo morrer. Tinha sido muito mais fácil ter ficado em casa e deixar de espetar facas no meu coração. Porquê? Porquê? Porquê acreditar na medicina humanitária? Às vezes, ponho tudo em causa. Às vezes, revolto-me. Às vezes sinto que me estou a autodestruir sem qualquer propósito.
Mas depois páro de me autoflagelar, fecho os olhos e deixo as minhas ideias girar à volta das minhas memórias. Escolhi ser médico para poder fazer a diferença na vida das pessoas. Dediquei-me à Anestesia e Cuidados Intensivos porque me maravilhei, deslumbrei, hipnotizei pela sensação de salvar vidas com as minhas mãos e o meu conhecimento. Cometi a loucura de me apaixonar pela medicina humanitária por sentir que a minha empatia não pode ter fronteiras.
E por ser um sonhador, já vi o mundo. Já vi mundos maravilhosos que a maioria dos mortais nem sabe que existem. Já salvei milhares de vidas, provavelmente mais do que a maioria dos médicos sonharia. Mas muito mais importante do que isso, já ensinei centenas de médicos e enfermeiros o estado da arte da medicina, fazendo que perpetuem o conhecimento e com ele infinitas vidas serão salvas.
Mas o que é realmente especial é sentir que faço parte de algo mágico e simples. Sou apenas um. Sou apenas mais um vector de uma mensagem muito especial, uma mensagem mágica, porque é uma mensagem que conecta mundos que não se tocam. Para o Congo, Paquistão, Afeganistão, Síria, República Centro Africana, Iraque, Sudão do Sul, Gaza, Iémen e outros mais, levei comigo todos os que acreditam que todas as vidas são iguais, e que todas as vidas têm o mesmo valor. Em cada palavra, cada sorriso, cada acto médico carrego um mundo de gente que acredita que vale a pena lutar por algo melhor. Ponho-os a falar uns com os outros, sem eles saberem que é possível. E quando regresso a casa a conversa continua. Não há um dia que passe que não sinta que tenho que falar pelas vozes que trago no meu coração. E falo, e grito e escrevo. E sei que já dei mundo a muita gente. Sei que terei feito bem o meu trabalho se os que vierem depois de mim o fizerem muito melhor. E é mágico sentir que já trouxe tanto mundo ao meu querido país.
Por que não o deixei morrer? Pela mesma razão que parto em missão uma e outra vez: Porque não gostaria da pessoa em que me tornaria se o fizesse. E nunca serei feliz se não gostar de mim. E eu quero o mesmo que toda a gente, ser feliz.
Espero que um dia este rapaz volte a ser feliz, da mesma forma que espero que as minhas palavras e os meus actos deixem o mundo um pouco melhor. Se nenhum dos dois acontecer, vou ser feliz a tentar.