Apps para covid-19: uma caixa de pandora?
O carácter voluntário da aplicação deverá ser condição sine qua non, a regulamentação da aplicação deverá deixar bem claro que os dados apenas são para acesso a um profissional de saúde e, por fim, que tais dados, finda a pandemia, serão imediatamente eliminados.
Desde o início da pandemia que governos e particulares procuram por soluções que ajudem a combater a covid-19 que veio alterar as nossas vidas.
É verdade que muito do que vivemos não seria expectável e por isso mesmo não seria fácil encontrar soluções para diversos problemas com que fomos confrontados. Contudo, apesar disso, muitos outros problemas já eram conhecidos e poderiam ter sido evitados se existisse uma verdadeira preparação para os combater. A título de exemplo, as mesmas autoridades de saúde pública que hoje estão a combater esta pandemia, são aquelas que clamam (além de alguns juristas, nos quais me incluo) por uma solução legislativa eficaz para o combate à tuberculose e os eventuais internamentos compulsivos de pessoas com doença infetocontagiosa que tarda em surgir. Eventualmente, um corpo jurídico que sustentasse essas soluções, seria já uma ajuda nos problemas que foram surgindo durante a pandemia.
Nos últimos tempos, soubemos que o INESC TEC (Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores, Tecnologia e Ciência, ligado às Universidades do Porto e do Minho) começaram a desenvolver, com o apoio declarado do Governo, uma aplicação de rastreio de contactos e alertas de infeções relacionadas com a covid-19. Esta aplicação para smartphones designada de StayAway Covid está a ser desenvolvida a partir do sistema disponibilizado pela Apple e pela Google. De forma resumida, esta aplicação permite alertar os utilizadores quando estes tenham estado perto de pessoas infetadas para que, consequentemente, tomem medidas de confinamento ou façam um teste para verificarem se estão infetadas.
Antes de mais, deixamos bem claro que, qualquer ferramenta que seja realmente útil para o auxilio dos profissionais de saúde para o combate a qualquer patologia é sempre bem-vinda. Mas será que esta ferramenta é mesmo a solução que várias pessoas apontam para o controlo dos focos de contágio? Para ser justo, diria que ainda ninguém sabe, mas já sabemos qualquer coisa.
Quando se vive num Estado autoritário, não existe qualquer questão a ser levantada quanto à utilização deste tipo de aplicações: o Estado quer, o Estado faz. Contudo, quando se vive num Estado de Direito Democrático em que a liberdade é considerada um direito fundamental, outros tipos de preocupações surgem de imediato.
Como é óbvio, ao serem fornecidos dados (mais ou menos anonimizados), surgem logo as preocupações com a privacidade. Contudo, apenas uma análise simplista posicionaria esta questão numa resposta de Privacidade vs. Pandemia. Qualquer tentativa de dizer que os direitos das pessoas, protegidos constitucionalmente, são um entrave a uma resposta efetiva à pandemia é abrir uma caixa de pandora que, mais tarde, com outros atores políticos, poderemos não ter capacidade de fechar.
Ninguém tem dúvidas que, enquanto não for encontrada uma vacina eficaz, testar e fazer o rastreamento são os fundamentos de uma resposta eficaz à pandemia. Tendo este ponto como assente, a utilização da aplicação para rastreamento já nos levanta muitas dúvidas. Desde logo, não está claro se alguns dos dados gerados pelos telemóveis são ou não úteis para o rastreamento.
Por outro lado, tais dados recolhidos não são tão confiáveis quanto o rastreamento manual de contactos realizado pelas autoridades de saúde pública.
Em Portugal ficou claro que o uso da aplicação era voluntário (não poderia ser de outra forma), mas tornar o aplicativo obrigatório faria aumentar a desigualdade.
O nosso principal alerta para esta aplicação é o seguinte: estão a ser desenvolvidas tecnologias como solução eficaz para combater a pandemia, partindo da presunção de que ela vai ser usada para fins benignos descurando que, pessoas mal-intencionadas, poderão vir a usar essa mesma tecnologia contra as pessoas que a usam. Se a aplicação visa proteger a pessoa, não pode a aplicação ser usada contra essa pessoa.
Isto assenta numa premissa que a vida profissional nos ensinou: qualquer tecnologia que confie em promessas de boas intenções será, no final, tão violada quanto essas promessas.
O rastreamento de contactos é relativo. O que se procura com estas aplicativos é acumular dados de todas as pessoas com quem interagimos e, possivelmente, de todos os locais que estivemos. Ora, nunca uma instituição ou governo registou centralmente tantos dados como os que estes tipos de aplicações podem gerar. Bem sabemos que as operadoras de comunicações, as redes sociais ou instituições bancárias poderão saber mais da nossa vida do que possivelmente imaginamos, mas por isso é que existe uma Comissão Nacional de Proteção de Dados Pessoais: para nos proteger dos abusos que tais entidades poderão cometer.
Ao escrever sobre estes pontos, recordamo-nos sempre de um ex-espião de um dos melhores serviços secretos do mundo que alertou que apenas com base num cartão de fidelização de uma grande superfície comercial, conseguiu saber que uma determinada pessoa estava grávida pelo aumento de consumo de chocolates e outras doçarias. Tal facto foi confirmado, quando essa pessoa, usando o seu cartão de crédito, comprou um teste de gravidez passados 2 meses. Isto também alerta para o facto de, mais do que os dados que são recolhidos, o importante é saber o que fazer com esses dados.
O contato tradicional, realizado pelos médicos de saúde pública quando há um surto, feito manualmente é, ainda, um meio inestimável para se fazer o rastreamento do contágio. Trata-se de profissionais treinados que tentam resolver os problemas que aquela pessoa tem relacionados com a doença, faz a análise dos locais por onde andou e as suas interações durante o período de contágio. Trata-se de um método testado e eficaz. Tais dados são sempre sobre pessoas identificáveis e, tem um objetivo limitado (responder a um problema de saúde especifico) e uma garantia de ter sido realizado por um profissional de saúde que tem obrigações legais, nomeadamente, de sigilo profissional.
Trata-se de um trabalho árduo, necessário e desgastante que a escassez de meios humanos e logísticos, no caso português, coloca em causa a eficácia deste método, considerando ainda o elevado desgaste que os profissionais de saúde têm ao realizar estas (e outras) tarefas ao longo destes meses de pandemia.
Dito isto, temos sérias dúvidas das virtudes que a aplicação tem para o combate à pandemia.
Os alertas que deixamos quanto à aplicação são que o seu carácter voluntário deverá ser condição sine qua non, a regulamentação da aplicação deverá deixar bem claro que os dados apenas são para acesso a um profissional de saúde e, por fim, que tais dados, finda a pandemia, sejam imediatamente eliminados.
Sem estas garantias, nenhum cidadão se poderá sentir seguro com uma aplicação deste tipo. Compete ao Governo deixar esta garantia aos seus cidadãos.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico