A verdade oculta por trás do poder do jejum intermitente
Em humanos a perda de peso é um processo muito mais comportamental do que fisiológico e que depende fundamentalmente da adesão a qualquer tipo de plano alimentar mais do que a composição nutricional do mesmo.
Os mais cépticos seguidores desta rubrica que me desculpem pelo ardiloso exercício do título do artigo, mas dificilmente algo atrai tanto os promotores de teorias conspirativas como a fórmula “a verdade oculta por trás de… (inserir tema)”. E este artigo é para eles.
Há mais um livro no mercado falando sobre as maravilhas do jejum que entre outras coisas refere que o jejum é melhor para a perda de peso porque o corpo “deixa de ser uma máquina de consumir açúcar e passa a consumir gordura”, que “reverte a diabetes tipo 2 e doenças auto-imunes”, que “12 horas de jejum são insuficientes e que 24h são fáceis de fazer” e que recomenda esse hábito tão português como jantar “um caldo de ossos pois não interrompe o jejum”. É interessante ver que nem é preciso ser profissional de saúde (basta ser um jornalista ou um comediante sensato), para ficarem na dúvida se estes benefícios “não serão coisa a mais” quando entrevistam a autora (que não é nutricionista como muitas vezes se diz).
Os fanáticos do jejum sabem que o seu público alvo adora (ou não tem infelizmente capacidade de identificar) várias falácias. Começando com a falácia da autoridade, faz parte da “cartilha” do jejum referir o Prémio Nobel da Medicina a Yoshinori Ohsumi, em 2016, com o seu trabalho nos mecanismos de autofagia em células de levedura (que pouco tem a ver com o jejum em humanos) mas sobre isso já falamos noutro artigo. Outra falácia clássica é a da antiguidade, uma vez que o jejum “é uma prática milenar que ainda hoje as grandes religiões — do judaísmo ao islamismo, passando pelo catolicismo — praticam”. Ora, se seguíssemos o exemplo de práticas médicas milenares podíamos voltar a usar enguias eléctricas para tratar gota, tratar cáries com cera quente, fazer sangrias com sanguessugas e por aí adiante.
Referir que com o jejum se passa a “consumir mais gordura e emagrece-se mais rápido” é uma bonita fábula mas que é desmentida pelos princípios fisiológicos básicos, dado que o que determina a oxidação de substratos energéticos é a intensidade da atividade física desenvolvida. Partindo do pressuposto de que todas as pessoas que estão a ler este artigo estão sentadas, todas estão a “queimar” mais gordura do que hidratos de carbono. Começamos a “queimar” mais hidratos de carbono, quando aumentamos a intensidade da nossa atividade como caminhar mais rápido, correr ou até “sprintar”. Apesar de uma ingestão crónica de hidratos de carbono de elevado índice glicémico e consequente aumento de insulina ter um efeito supressor na oxidação de gordura, o que determina a perda ou aumento de massa gorda é o balanço total de calorias ao longo do dia (total ingestão vs total gasto) e não o nutriente oxidado momentaneamente (até porque é bom sinal que o corpo esteja a “consumir” mais açúcar, pois significa que estamos a treinar a alta intensidade). A melhor forma de “queimar” mais gordura é mesmo ser fisicamente activo, dado que uma das muitas adaptações positivas do treino é melhorar a nossa capacidade de oxidar gordura.
A diabetes tipo 2 é de facto reversível quando se perde peso seja “apenas” através de dieta, de cirurgia bariátrica e quando se ajustam os hidratos de carbono da dieta (seja a quantidade total seja a sua carga glicémica, independentemente da prática de jejum. Uma revisão de 11 estudos sobre jejum (de 12 a 20 horas) com duração de 4 a 8 semanas, demonstrou que o efeito do jejum intermitente é marginal na redução dos níveis de glicemia em jejum quando em comparação com a restrição calórica contínua. O que é o mesmo que dizer que o jejum de facto resulta, mas resulta de forma igual a uma dieta com o mesmo número de calorias, mas ingeridas com refeições de 3 em 3 horas por exemplo.
Quanto à perda de peso, mais uma vez se reforça que em humanos a perda de peso é um processo muito mais comportamental do que fisiológico e que depende fundamentalmente da adesão a qualquer tipo de plano alimentar mais do que a composição nutricional do mesmo. Quando falamos destas abordagens mais alternativas para o emagrecimento, é típico o pensamento: “Conheço alguém que começou a fazer jejum intermitente e já perdeu imenso peso”; ou então “comigo tem resultado muito bem”. Alguém que tem a motivação para alterar a sua alimentação de forma tão significativa como deixar de comer durante grande parte do dia, terá sempre resultados, não pela abordagem em si, mas porque está motivado para cumprir à risca as orientações que lhe foram dadas. Nenhum processo de perda de peso pode ser dissociado do contexto motivacional e comportamental que o envolve, uma vez que somos humanos e não ratinhos ou células em placas de Petri. Se há um típico padrão alimentar associado à obesidade em Portugal é a inexistência de pequeno almoço e de pequenas refeições, e duas “montanhas” de comida ao almoço e jantar, que no fundo correspondem a 2-3 horas diárias a comer e o resto do tempo em jejum, o que mais uma vez reforça que é o total de calorias que faz toda a diferença no final do dia.
Concluindo, existe uma diferença entre ouvir um profissional de saúde dizer “se quiser fazer jejum está à vontade para o fazer, é uma escolha sua” ou “o jejum intermitente reverte a diabetes tipo 2, aumenta a longevidade e deve fazê-lo todos os dias”. Esta última postura pode ser vista desde logo como um “alerta de aldrabice” onde irá certamente encontrar outros “clássicos” como exclusão desnecessária de glúten e lacticínios, dezenas de suplementos nutricionais que não precisa de tomar, análises clínicas ou testes de intolerância alimentar que não têm validade científica e certamente consultas ao dobro ou triplo do preço normal, uma vez que uma aldrabice para “colar” convém que seja cara, pois se for barata ninguém acredita. Se o seu ego se assusta quando ouve a palavra “convencional” pois acha-se especial e quer sempre algo “diferenciado e personalizado”, então está no bom caminho. Irá certamente pagar o célebre imposto da ignorância por este tipo de abordagem, mas se esse for o mote para cumprir e aderir a um plano alimentar saudável, nada a opor. Como se diz na gíria “não existem golos feios”, e se o objectivo a que se propôs for atingido terá sido sempre uma boa opção. Se é apenas alguém interessado pela área e no meio de tanta (contra)informação já não sabe para que lado se virar, pode ter a certeza que o jejum sendo seguro e válido do ponto de vista científico, está longe de ser a cura para todos os seus problemas, sobretudo se for mais uma mudança de estilo de vida com vista ao emagrecimento que não consegue manter para a vida toda.