A irreverência dos surtos
A crónica de um surto é composta por histórias de doença e sofrimento, de isolamento e tristeza, de desemprego e penúria, de ansiedade, medo e desespero. Como é que um singular acto imponderado pode causar tantos e tão nefastos efeitos?
Era uma vez um surto. Um ‘surto’ é uma forte e súbita manifestação de uma determinada realidade; sendo um termo de utilização particularmente frequente em epidemiologia, reporta-se então a um aumento inesperado, rápido e muito significativo do número de pessoas contagiadas por doença infeciosa. A doença do surto é originada pela natureza, mas o surto da doença é produzido pelo humano.
Portugal parece ter 65 surtos de covid-19, 53 dos quais na grande Lisboa. Era, pois, uma vez, muitas vezes, um surto. Começa quase ingenuamente. É um e um outro que se lembra de chamar amigos, talvez para comemorar o desconfinamento ou por causa do confinamento passado. Hoje pouco importa, apesar de ontem ter desculpado tantas atitudes insensatas. Aos dez generosamente permitidos, juntam-se 20 amigos. Mas esses amigos têm mais amigos, família, colegas e até alguns conhecidos que se podem juntar também. Uns são daqui, outros de mais longe, e outros ainda estão de passagem. E entre tantos, circula aquele assintomático que incautamente fala e ri, troca de copo e de cigarro, abraça e beija. Tudo se vai desenrolando espontaneamente e tudo se precipita naturalmente.
Amanhã, alguém adoeceu com covid-19 e as entidades responsáveis pela saúde pública começam a testar os possíveis contactos. O número de infectados vai crescendo. Implementa-se uma operação de testagem massiva, mobilizando recursos escassos e dispendiosos. Os dias passam e os números continuam a aumentar. De repente, da festa de Lagos, o surto era já de 76 casos, depois subiu para 90, e agora são 111 pessoas infectadas. Entretanto, uma trabalha num restaurante, outra numa fábrica, outra numa escola, aquela no hospital. Aqui teme-se pelos doentes internados, já fragilizados por várias patologias e debilidade do sistema imunológico, pelos utentes sempre vulneráveis, pelos funcionários. O restaurante, a fábrica, a escola fecham. Os prejuízos das empresas disparam e o desemprego de muitos torna-se iminente; os alunos, com a data dos exames a aproximar-se, voltam para casa e responderão às perguntas nacionais numa situação de desvantagem em relação a outros. Alguns lares de idosos também são afectados. A preocupação intensifica-se. Afinal, cerca de metade dos milhares de óbitos por covid-19 na União Europeia sacrificaram utentes de lares. Em Lagos as visitas foram suspensas em 13 estruturas sociais, incluindo lares de idosos, unidades de cuidados continuados, lares de jovens e de saúde mental, em oito concelhos.
A crónica de um surto é composta por histórias de doença e sofrimento, de isolamento e tristeza, de desemprego e penúria, de ansiedade, medo e desespero. Como é que um singular acto imponderado pode causar tantos e tão nefastos efeitos? Uma simples leviandade desencadeia uma grave torrente incontrolável de casos que se multiplicam e dispersam exponencialmente. Quem responde por esta terrível sequência de acontecimentos? Parece que a responsabilidade tende a diluir-se ao longo da cadeia de eventos, paradoxalmente, à medida que as consequências se agudizam.
E entre aqueles 111 infectados, não há grupos etários imunes: 19 são crianças com menos de nove anos e os dois internados têm 27 e 39 anos. Aliás, desde o início do desconfinamento, a 4 de Maio, os novos casos de covid-19 quase duplicaram entre os jovens, tendo crescido cerca de 90% na faixa etária dos dez aos 29 anos. A velha quimera da invulnerabilidade do jovem caducou. E os jovens sofrem também. Os muitos internados, antes perfeitamente saudáveis, apresentam sintomas graves, nomeadamente cardíacos, e após a recuperação tem-se registado fadiga persistente, debilidade geral, susceptibilidade acrescida a doenças virais.
Não entrarei no confronto, muito ideológico além de científico, da interpretação dos números diários de novos infectados ora atribuídos à despreocupação dos jovens, que não evitam os animados amplos convívios, ora à obrigação dos habitantes das periferias de tomar transportes públicos para o trabalho diário. Ambas são pertinentes, apesar de um nível distinto de responsabilidade directamente proporcional à existência de alternativas. Nem tão pouco comentarei a suposta segunda ‘onda’, ou talvez ‘vaga’, ou a mais provável conjectura da infecção estar enraizada na comunidade. O que se perfila irrefutável é mesmo a irrupção de surtos e a responsabilidade humana na sua proliferação. E não adianta aspergir alguns ajuntamentos com uns pingos de legalidade, com o salvo-conduto de ‘políticos’ ou ‘sindicais’ para os imunizar. Por isso, exige-se mais responsabilidade social a todos e qualquer irreverência em acatar as recomendações sanitárias é censurável e injustificável perante a irreverência do vírus, essa sim, escapando totalmente à nossa vontade.