Arrendamento ‘social’: Portugal vs. Dinamarca e Inglaterra
Um parque de arrendamento ‘social’ de grande dimensão, bem distribuído pelo território e de boa qualidade, é importante para reduzir a volatilidade dos preços de habitação e as situações de sobre-endividamento das famílias.
O entendimento do conceito de habitação social varia entre países e não é consensual mesmo num mesmo país. Para alguns, num sentido mais restrito, o conceito de habitação social refere-se apenas à habitação para arrendamento cujo valor da renda é calculada em função do rendimento, composição e dimensão do agregado familiar independentemente do valor da habitação. Para outros, num sentido mais alargado, o conceito de habitação social refere-se a toda a habitação construída para arrendamento ou venda que foi subsidiada por apoios diretos e indiretos da administração pública.
Muitos autores, onde me incluo, têm vindo a defender a importância de um setor de arrendamento acessível às classes média e baixa, que pode ter associado vários modelos de financiamento e diferentes entidades promotoras e gestoras desta habitação. Um parque de arrendamento ‘social’ de grande dimensão, bem distribuído pelo território e de boa qualidade, é importante para reduzir a volatilidade dos preços de habitação e as situações de sobre-endividamento das famílias.
Os estudos de análise comparada internacional têm demonstrado que o peso e a composição do setor de arrendamento ‘social’ variam substancialmente entre países, em termos de tipo de senhorios, origem dos subsídios e formas de cálculo das rendas. Esses estudos comparativos demonstram também que a mudança de programas ou de modelos de financiamento é frequentemente justificada por razões de ordem económica ou político-ideológica. Esses mesmos estudos têm ainda demonstrado que as preferências sociais por situações de arrendamento ou de compra são o resultado de opções passadas e atuais no que respeita às políticas de habitação e de planeamento do território que afetam a qualidade, a distribuição espacial e o preço da habitação. Por exemplo, a ‘predisposição’, em Portugal, para a compra de habitação resultou de políticas de habitação que, entre 1987 e 2011, destinaram cerca de 73% das despesas do Orçamento Geral do Estado (OGE) à habitação (perto de 7 mil milhões de euros) a programas de bonificação de juros do crédito à construção ou à aquisição de habitação. Apenas uma parte diminuta do OGE destinado à habitação apoiou o arrendamento e a reabilitação de edifícios (respetivamente 8% e 1,7% ou, em valores absolutos, 803,8 mil e 166,5 mil euros). É ainda importante notar que o total das despesas do estado com habitação em Portugal situa-se, desde 2010 em 0,1% percentagem do PIB.
Ao contrário, noutros países, como a Dinamarca ou mesmo a Inglaterra, existiu a ambição política de criar um setor de habitação sem fins lucrativos que complementasse os da saúde, da educação e da segurança social, constituindo os quatro pilares fundamentais do estado providência ou de bem-estar social. Hoje a Dinamarca, um país com sensivelmente 5 milhões de habitantes, tem um stock de habitação sem fins lucrativos de 595.000 fogos. Em Portugal, com aproximadamente 10 milhões de habitantes, o stock de habitação social é de 120.000 fogos.
Poder-se-á pensar que tal desproporção da dimensão do setor de habitação ‘social’ se explica pelo facto de a Dinamarca possuir um PIB per capita que quase duplica o português. Mas a explicação parece recair antes no modo com esta habitação tem sido construída, gerida e usada para financiar o próprio setor. Na Dinamarca, o setor de habitação social sem fins lucrativos é construído e gerido por 700 associações de habitação sem fins lucrativos, que gerem 7.500 bairros com um total de 595.000 fogos de arrendamento (o que corresponde a cerca de 20% do total da habitação no país). A forma de financiamento e de gestão tem-se mantido estável ao longo do tempo. O município onde a habitação é construída financia 14% do custo total do novo bairro de habitação, sendo o restante valor financiado por empréstimos bonificados pelo Estado (88% dos custos de construção, incluindo o terreno) e por depósitos dos inquilinos (2%). O cálculo das rendas da nova habitação baseia-se no custo da construção e da gestão dessa habitação. Os municípios garantem ainda um subsídio de apoio à renda quando as famílias se encontram em situação de carência económica. A afetação dos fogos por parte das associações de habitação é feita a partir de listas de espera, podendo qualquer família, independentemente do seu rendimento, candidatar-se a esta habitação. Em contrapartida do financiamento atribuído a este tipo de habitação, o município tem direito a alocar situações de emergência até 25% do total dos fogos vagos (33% em Copenhaga). Desde 1966, o Landsbyggefonden (Fundo Nacional para Associações de Habitação Sem Fins Lucrativos) recebe os pagamentos das rendas apenas depois de terem sido pagos os empréstimos que custearam a construção da habitação. Este fundo permite ao setor autofinanciar-se, cobrindo obras de conservação, construção de nova habitação, e medidas de apoio social e de ajuda à integração socioeconómica das famílias. Estima-se que em 2020 as rendas irão contribuir com 2.520 milhões de coroas dinamarquesas para o Landsbyggefonden.
Em Portugal, a opção persistente por regimes de ‘renda resolúvel’ e pela alienação de habitação social tem impedido a criação de um stock de habitação social como existe no caso dinamarquês. É ainda interessante notar que a política do Right-to-Buy (venda de habitação social a preços de saldo) foi originariamente lançada pelo governo conservador de Margaret Thatcher em Inglaterra, mas num contexto completamente diferente do português. Nos anos 1980, cerca de 1/3 da população inglesa vivia em habitação social, num stock antigo construído sobretudo depois da 2ª Guerra Mundial. No território português existia uma percentagem residual de habitação social e eram numerosas as situações de sobrelotação habitacional e de construção clandestina, sobretudo depois do regresso dos retornados das guerras nas colónias nos anos 1970.
Ainda hoje continua a haver em Portugal uma percentagem de habitação social diminuta (2%), ao passo que a Inglaterra é um dos países europeus com o stock mais extenso e de maior qualidade da Europa, equivalente a 17% do total da habitação. De resto, quando nos anos 1990 se lançou o Programa Especial de Realojamento (PER) para as áreas metropolitanas de Lisboa e Porto já se sabia que este assentava num modelo de construção e urbanístico que estava ultrapassado e a ser criticado e revisto noutros países.
Em 1990, a Lei de Planeamento Urbano (Town and Country Planning Act) determinou, no artigo 106, que cada nova operação de construção e/ou de requalificação de habitação acima de um determinado número de fogos teria de incluir uma percentagem de habitação para ser construída e gerida por associações públicas ou privadas sem fins lucrativas. Os objetivos eram promover a mistura de regimes de habitação e facilitar o acesso a solo a preço económico para a construção de habitação sem fins lucrativos. Os instrumentos de zonamento inclusivo da habitação têm vindo a ser implementados desde então em vários países.
Em Portugal, a Lei de Bases da Habitação, no artigo 22º relativo à Carta Municipal de Habitação, define a possibilidade de os municípios com declaração de carência habitacional condicionarem as operações urbanísticas privadas ao cumprimento das metas habitacionais para habitação permanente e a custos controlados. Na execução de qualquer plano ou operação de expansão ou renovação urbanística, o município poderá determinar que a provisão de uma percentagem do total dos fogos a construir deve ser destinada a habitação social ou a arrendamento acessível. No documento Grandes Opções do Plano 2019-2022 para a cidade de Lisboa afirma-se que a revisão do Plano Diretor Municipal irá “aprovar alterações faseadas aos instrumentos de gestão territorial que contemplem uma percentagem mínima de 25% do edificado, nas novas construções ou operações de reabilitação, destinada a habitação a custos controlados” (p. 9).
Aguardam-se estas alterações com a expectativa de que possa existir a integração de regimes de habitação apoiada e acessível ao nível das novas operações urbanísticas e que o debate e a aplicação de boas práticas se generalizem aos restantes municípios portugueses. Termino lembrando que a venda de habitação ‘social’ é efetivamente um bom negócio para os privados, mas má para o Estado. E que uma maior integração das políticas de planeamento e de habitação é necessária para que os objetivos de coesão social e territorial sejam atingidos.
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico