Como explicam os pais o racismo às crianças?

O racismo e a violência associada entraram nas nossas casas, com imagens chocantes vindas dos EUA. Este sábado, Lisboa associa-se aos protestos com uma manifestação convocada pela Plataforma Antifascista Lisboa e Vale do Tejo e pela Frente Unitária Antifascista.

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Luís Costa Branco, Weza Silva e os filhos Kendi e Chloé DR
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Ariana Furtado e a filha Madalena DR
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Ana Gerschenfeld com os filhos quando tinham 6 e 2 anos DR

Luís tem os olhos azuis e é louro. Weza é negra. Kendi e Chloé, de 8 e 5 anos, respectivamente, são quase tão brancos como o pai, no Inverno, mas mal o sol lhes afaga a pele, ficam da cor da mãe. Esta semana, Luís e Weza sentaram-se com Kendi e explicaram-lhe o que se está a passar nos EUA, o que é que George Floyd fez e por que foi morto. Explicaram-lhe também o que deverá fazer se, algum dia, for confrontado por causa da sua cor, do seu cabelo ou das suas origens. O menino ficou de lágrimas nos olhos.

Ariana Furtado, professora de 1.º ciclo de origem cabo-verdiana, ainda não precisou de ter essa conversa com a filha Madalena, 6 anos, e esta semana leu uma história aos seus alunos sobre uma menina que era gozada pelos colegas, para perceber se precisaria de falar do que se passava nos EUA às crianças do 1.º ano, mas nenhum fez qualquer relação com o que se vê nos noticiários, logo, não falou do caso. A docente sabe como falar das origens da discriminação — é nas aulas do 4.º ano, quando se aprende sobre a expansão marítima e como esta deixou vários povos sem ferramentas para se desenvolverem. 

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Aos 6 anos, Madalena ainda não questionou os pais sobre a cor da pele DR

Não é a mesma coisa educar uma criança negra e uma criança branca, admite Weza Silva, empresária. “É muito ridículo ter de estar a explicar isto”, diz Luís Costa Branco, jornalista. Os pais brancos “não têm a preocupação de ter esta conversa, mas nós temos porque um dia, os nossos filhos podem ser ofendidos ou humilhados e temos de os preparar para isso”, contrapõe a mulher. Não falar sobre discriminação “é um privilégio que os brancos têm”, sublinha. O PÚBLICO falou com alguns pais de crianças brancas e recebeu como resposta que essa é uma conversa que nunca tiveram — no entanto, é uma conversa que deviam estar a ter, defendem alguns especialistas.

Alertar é preciso

A psicóloga Bárbara Ramos Dias, autora do livro Respostas Simples às Perguntas Difíceis dos Nossos Filhos (2019, Manuscrito), defende que “por regra devemos esperar pela pergunta [da criança]”. Mas, ressalva, “há temas, como este [do racismo nesta fase], em que devemos alertar”. 

Depois de uma primeira abordagem, então os pais devem aguardar pelas perguntas. “Nesta altura, em que as crianças estão connosco em casa, é muito importante os pais falarem, explicarem o que é [o racismo]”, procurando usar conceitos e termos fáceis de entender. “Explicar que ‘é feio ser racista’ ou que apesar de haver cores de pele diferentes, os corações são todos iguais.”

“Às vezes, sem querer, meninos que vivenciam o racismo em casa, reproduzem o que ouvem na escola e aí corrige-se”, relata Ariana Furtado, que se sente privilegiada por trabalhar numa escola, em Lisboa, onde há crianças de 17 nacionalidades e onde isso é tido em conta desde o pré-escolar. “Ensinamos sobre a importância das palavras, por exemplo, o nome dos meninos pode ser fonte de conflito, podem ser usados para os menosprezar [quando têm nomes estrangeiros]. Ensinamos a não gozar. Procuramos diversificar os livros, dando a conhecer outras culturas sem cair no folclore”, enumera, exemplificando que ainda há crianças que acreditam que os africanos vivem em savanas. Ariana procura desmistificar estereótipos e preconceitos. 

“O tema [do racismo] deve ser tratado ao longo da prática lectiva e não de uma forma isolada, reforçando sempre a diversidade e o respeito pelas diferenças”, defende a educadora de infância Célia Figueira Fonseca. Sobre a questão do que é o racismo, a educadora reflecte que “não é uma pergunta que as crianças façam só por si”. No entanto, quando a questão surge talvez se possa explicar que “o racismo será quando alguém não aceita outra pessoa por ser diferente”.

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Luís Costa Branco e Weza Silva lamentam que a pigmentação continue a ser motivo de discórdia DR

Já Bárbara Ramos Dias constata que “não há respostas certas ou erradas”, aconselhando que os pais procurem falar de forma a reflectirem o que sentem. No fim, sublinha, é vital deixar que os mais novos se expressem, dando-lhes a palavra para que possam dizer “o que aprenderam e qual a opinião que têm”, além de se dever “perguntar se têm dúvidas”.

“E então?”

Weza Silva lamenta como o racismo está entranhado e eternizado na sociedade portuguesa. E dá alguns exemplos: o mudar de passeio quando se vê um negro ou, no autocarro, não se sentar ao seu lado. A empresária confessa que se o filho fosse mais velho, dificilmente o deixaria sair à noite e apanhar um táxi sozinho. O marido imagina o rapaz daqui a uns dez anos, certamente que será alto e terá aquele “andar ginga” que têm os angolanos, porque já é assim que caminha, e se usar uma sweatshirt com capuz, “a primeira leitura que vão fazer do seu perfil será errada”. Aliás, o jornalista confessa que, por vezes, tem algum receio quando a mulher sai à noite com as amigas: “E ela é adulta, agora estamos a falar de crianças.”

Quando Kendi tinha 4 anos, a mãe chegou à escola e viu-o triste, soube que um amiguinho não queria brincar com ele “porque era preto”. O menino nem percebeu bem a razão. Mais tarde, a outra mãe telefonou a pedir desculpas e disse que não compreendia por que o filho tinha agido assim — “até temos uma empregada negra”, argumentou. Ainda este ano, quando Weza foi buscar Chloé à escola, a menina perguntou a uma amiga se era a sua tia que ali estava para a apanhar, ao que a outra respondeu que era a empregada. “É essa a referência, um preto é o empregado, é alguém que está abaixo”, resume Weza. “E as crianças vão interiorizando essa hierarquia. Incomoda-me muito. E nós somos privilegiados porque as pessoas nos reconhecem e têm algum pudor, fazem alguma filtragem [quando falam connosco], agora as pessoas mais carenciadas...”, lamenta Luís Costa Branco.

Nesse dia em que explicaram ao filho o que se passou com Floyd, disseram-lhe também que algum dia ele ou a irmã poderão ser confrontados com “atitudes parecidas”, vão ficar tristes e magoados, mas quando isso acontecer têm de enfrentar, sem agressividade, e questionar o outro. “De queixo levantado, de costas direitas, perguntas: ‘E então?’.
— A tua mãe é preta!
— E então?
— Tu és preto!
— E então?
Desconstruir sempre, até o outro perceber que o argumento não tem qualquer validade. E nunca choras à frente [de quem te ofende]”, recorda Luís Costa Branco, a conversa que teve com o filho. 

Falar para proteger

Tendo adoptado duas crianças, uma negra e outra mestiça, a ex-jornalista Ana Gerschenfeld pensa ser “mais natural explicar a uma criança negra [o que é o racismo] porque esta o sente”, tornando-se quase uma obrigação. Mais: lembra a necessidade que sentiu, como mãe, em abordar o assunto para os proteger de situações reais, recordando até um ano em que se viu forçada a mudar a filha mais velha de escola depois de uma professora ter recusado a ideia de que a pessoa que se apresentou para uma reunião, branca, pudesse ser o pai.

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in Respostas Simples às Perguntas Difíceis dos Nossos Filhos (2019, Manuscrito), de Bárbara Ramos Dias DR

Já a “uma criança branca”, Ana Gerschenfeld estima, “deverá ser mais difícil explicar por que os negros têm este tipo de problemas” até porque muitas vezes a questão não se coloca. “Mais depressa crianças brancas perguntarão ‘de onde vêm os bebés’ do que ‘o que é o racismo’”, não havendo necessidade de existir a “the conversation” — um fenómeno popular entre pais com filhos negros nos EUA, mas não só, e que passa por lhes darem instruções precisas de como lidar com o racismo e até de como agirem numa situação em que são confrontados com as autoridades.

Hoje, já crescidos, com 21 e 17 anos, a ex-jornalista descreve os filhos como “muito conscientes” das questões relacionadas com o racismo contra negros, mas também contra outros.

Embora a filha de Ariana Furtado tenha a consciência da diferença — que “a mãe é negra e o pai é branco”; que a avó materna a ensinou crioulo e que visita os avós paternos no Alentejo; que na sua escola “há meninos de diversas tonalidades, a falar línguas diferentes” — nunca experienciou uma atitude que a fizesse pensar sobre isso. Mas esse dia chegará, talvez só nesse dia, a professora venha a ter essa conversa. “A minha filha tem de se sentir sempre muito amada e livre para saber que pode falar tudo connosco”, conclui. 

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