Partidos mostram abertura para discutir prostituição e encontrar novas respostas
Petição pelo enquadramento legal da prostituição e a despenalização de lenocínio simples foi discutida esta quinta-feira na primeira comissão parlamentar. O PAN já prepara um iniciativa legislativa com programas de saída da prostituição.
Foi um exclusivo feminino o debate sobre o eventual enquadramento legal da prostituição e a descriminalização de quem a facilita, que esta quinta-feira à tarde decorreu na Assembleia da República. Consensual, apenas a complexidade deste universo e a necessidade de discutir as respostas a quem nele presta serviços sexuais - para diminuir os riscos da actividade e/ou oferecer uma saída.
O assunto entrou no Parlamento através de uma petição. Os signatários querem que uma pessoa adulta que preste serviços sexuais de livre vontade seja considerada uma profissional, declare rendimentos, pague impostos, desconte para a Segurança Social, e que se legalizem as casas onde a actividade se exerce, de modo a assegurar segurança e higiene. Defendem também a subida de idade mínima para os 21 anos, o exercício limitado a pessoas com nacionalidade portuguesa ou estrangeiras em situação regular e a obrigatoriedade de fazer exames médicos de seis em seis meses e de ter um certificado.
Isso mesmo explicou Ana Loureiro, a primeira signatária, que já foi acompanhante e é dona de duas casas. Ouviram-na membros da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, que deve apreciar a despenalização do lenocínio simples, e da Comissão de Trabalho e Segurança Social,f que deve apreciar a regulamentação da prostituição, numa sessão conduzia pelas deputadas Elza Pais e Joana Sá Pereira.
Abertura à discussão
Cláudia Santos, do PS, mostrou abertura para discutir os temas propostas. Levantou dúvidas sobre a barreira dos 21 anos. Questionou se criminalizar os clientes de pessoas maiores de idade servirá não para as proteger, mas para as remeter para espaços de maior “opacidade e marginalidade”, como se vê nos países que adoptaram o chamado modelo nórdico. Também não está convencida da exigência de um certificado de aptidão para a profissão. “Faz sentido exigir esses certificado à pessoa que presta o serviço sexual e não a quem o compra?”
Certa de que “este debate tem de ser feito” e que esta petição “pode ser o pontapé de saída”, Sandra Cunha, do BE, teve a intervenção mais longa da sessão. Lembrou que, só nos anos 80, a prostituição deixou de ser proibida em Portugal e que “a clandestinidade e o isolamento agravavam todos os problemas de quem se prostituía”. Ora, o modelo em vigor - que não interfere se uma pessoa adulta decide prestar serviços sexuais, mas criminaliza quem, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar a sua actividade - não anula os riscos. “Estas pessoas precisam de ser protegidas. Só é preciso discutir em que moldes”, sintetizou, depois.
Ainda na sessão, que se desenrolou ao longo de uma hora, aquela deputada chamou a atenção para a “marca incontestável de género, de classe e étnico racial”. Prostituem-se “as mulheres mais pobres, as mulheres imigrantes, as mulheres trans e alguns homens gays”. Há toda uma dimensão de “opressão, subjugação, dominação, exploração” que, em seu entender, “não pode ser retirada da equação”. E ela é tanto “mais intensa e violenta quanto mais diz respeito à integridade física e psíquica das pessoas e à intimidade do seu corpo”.
Conhecendo a experiência de outros países, o caminho não se lhe afigura evidente. Uma coisa será decidir vender um serviço sexual e fazê-lo e outra, “muito diferente”, será vender a “força de trabalho para terceiros venderem esses serviços”. Pergunta-se se “a subordinação a uma entidade patronal não põe em causa a autodeterminação e a autonomia sexual”. “A realização das actividades de forma autónoma, com auto-organização, não será mais segura e respeitadora do que trabalhar para uma entidade patronal?”
Programas de saída
“Parece-nos que é fundamental que algo seja feito ao nível da protecção destas mulheres”, corroborou, por sua vez, Inês Sousa Real, do PAN. Mencionou as condições de saúde e de trabalho, mas centrou-se nos programas de saída. O seu partido está a trabalhar numa iniciativa legislativa que contempla, por exemplo, apoio social de reinserção e formação profissional. “Não sendo possível harmonizar para já aquela que é uma visão mais diferenciada entre quem é a favor ou contra a regulamentação, estes aspectos são consensuais; faz ou não sentido começar o caminho por aí?”
Uma proposta que vai ao encontro do PCP, que é absolutamente contra qualquer tentativa de enquadramento legal da prostituição e descriminalização do lenocínio simples. Alma Rivera lembrou que, para o seu partido, toda a prostituição é uma forma de violência e de exploração. “Não podemos ignorar, sobretudo no pós-covid, que a pobreza e a exposição reiterada à violência ao longo da vida não são uma escolha pessoal, são consequências das desigualdades e as discriminações, baseadas no sexo, na condição económica, mas também na origem”, discursou. “Falamos de mulheres que muitas vezes foram atiradas para essa situação num momento de fragilidade.” E, depois de lá estar, não é fácil sair. “Tem de existir respostas sociais, desde logo mecanismos e programas de saída”. Não tê-los “é uma falha gigantesca”.
Lena Lopes, do PSD, saudou a coragem das primeiras subscritoras da petição, revelou que não tem boa impressão do que se passa nos países que desenvolveram modelos de enquadramento laboral da prostituição e adiantou que o seu partido ainda não tomou uma posição sobre o assunto. “Neste momento, o PSD não tem ainda um pensamento.” O grupo parlamentar do CDS-PP não pediu a palavra.
Joacine Katar Moreira, deputada não inscrita, revelou-se desprovida de certezas. Por um lado, partilha a ideia feminista de que uma mulher deve ter o direito de fazer o que quer com o seu corpo. Por outro, olha a realidade concreta de “mulheres imigrantes, mulheres economicamente desfavorecidas, das mulheres em situação de irregularidade”, para quem a entrada nesse mundo, às vezes, não é uma opção. “Na minha óptica qualquer iniciativa de legalização necessita de salvaguardar a situação das mulheres que estão numa situação de desfavorecimento social.”
Já depois dos vários partidos se terem pronunciado, Isabel Moreira (PS) pediu a palavra para fazer os esclarecimentos que entendeu necessários. “Saber se é ou não uma escolha pessoal, eu tenho lido bastante sobre esta matéria e, ao contrário do que é intuitivo, por existir muitas situações de pobreza, uma enormíssima quantidade de pessoas escolhe a prostituição tendo outras alternativas. Essa escolha, penso, deve ser respeitada.”
Ana Gomes, a segunda signatária, manteve-se calada. Procurando responder às questões, Ana Loureiro defendeu que antes dos 21 anos as pessoas não têm maturidade para perceber as consequências da entrada naquela vida. Sustentou que o certificado médico são necessários para a salvaguarda dos profissionais do sexo. Expressou dúvidas sobre a eficácia de planos de saída no caso de pessoas que conseguem, prestando serviços sexuais, ganhar “100 ou 120 euros por dia”. E explicou, como pediu Elza Pais, que lenocínio quer ver despenalizado.
“A prostituição não vai acabar nunca”, enfatizou. “Se houver uma legalização e uma regulamentação, a polícia pode agir no momento, nós podemos nos queixar de maus tratos.” Trabalhou como acompanhante antes de abrir o seu negócio. “Ninguém melhor do que eu para saber que a legislação e a regulamentação é essencial. Em relação à despenalização do lenocínio, nós não queremos a despenalização por meio de coacção, por meio de agressão, por meio de retenção de documentação, não queremos despenalização para quem bate nas mulheres e as obriga a fazer sexo com qualquer cliente. A mulher tem direito de escolher – ou o homem – com quem quer estar.” As suas colaboradoras, afirmou, podem recusar clientes. Reconheceu que fica para ela metade do que cobram. Afiançou que lhes assegura o que precisam para trabalhar em segurança e higiene. Paga renda, luz, água, gás, anúncios. “Não estou a fazer mal a ninguém.”
Como reuniu mais de quatro mil assinaturas, a petição tem hipótese de ser debatida em plenário. As deputadas terão de analisar se tem condições para passar a essa fase. Com ou sem esse pretexto, os partidos podem vir a desenvolver iniciativas legislativas sobre o tema.