A propósito do caso Valentina – uma reflexão sobre a intervenção com as famílias
A alteração de comportamentos da família não é compatível com um contacto episódico, havendo necessidade de criar condições para um acompanhamento regular/sistemático.
No início deste mês, a morte de Valentina, de nove anos, suscitou-nos uma reflexão sobre as práticas de avaliação e intervenção com crianças em situação de risco ou perigo que utilizamos e um motivo para partilhar alguns dos seus fundamentos e procedimentos.
Ainda que desconhecendo os contornos do seu enquadramento, que podem muito bem ter sido os mais ajustados, o caso suscita-me a necessidade de partilhar uma reflexão sobre a prática profissional, no âmbito da intervenção social, com as famílias em situação de risco ou perigo, em que penso ter de haver coragem para inovar nos princípios e metodologias de intervenção e avaliação de modo a prevenir o seu bem-estar.
Um dos objetivos desta intervenção é o da proteção urgente/imediata das crianças vítimas de violência em contexto familiar, como pessoas de direitos próprios. Este tipo de intervenção deve procurar contrariar as avaliações e intervenções descontextualizadas (retiradas do contexto natural, da realidade das famílias), muitas vezes lineares ou determinísticas e valorizar uma interação entre os profissionais e a família que a motivem para uma mudança global.
Esta intervenção representa uma abordagem terapêutica, global e contextualizada, na procura de soluções para os problemas das famílias através de uma transformação dos comportamentos e atitudes da família, com o objetivo de lhes proporcionar a capacidade de exercerem de forma saudável a parentalidade de modo a promover o bem-estar físico, social, emocional, cognitivo e comportamental dos filhos, reduzindo ou eliminando o seu sofrimento e assegurando a proteção imediata da criança (Delgado-Martins, 2017).
A nossa experiência mostra-nos que as sinalizações e os diagnósticos dos problemas das famílias, realizados, muitas vezes, longe dos seus contextos de vida nem sempre correspondem aos “dados reais” das famílias. Neste modelo de intervenção é fundamental conhecer a realidade das famílias, observando os contextos e as interações familiares entre pais e filhos, em casa, em passeios e noutras rotinas diárias do seu dia a dia, permitindo a compreensão do contexto e das necessidades da família como um todo, e perceber a dinâmica familiar vivenciada. Esta realidade social não é possível ser observada apenas em entrevistas, no espaço do gabinete/serviço, nem através de escalas de atitudes parentais.
É contrariando esta tendência que consideramos fundamental aprofundar o conhecimento dos contextos familiares, através de intervenção não sobre as famílias, mas sim com elas, que nos permita entender melhor a sua realidade de vida. Neste âmbito, é importante que o profissional desenvolva uma escuta diferenciada dos elementos da família, evitando o uso de prejuízos baseados em teorias preestabelecidas de funcionamento das famílias. Além disso, exige-se um trabalho em equipa transdisciplinar, em parceria, articulado, coordenado e personalizado (Delgado-Martins, 2017).
Esta intervenção deve desenvolver-se com base na complementaridade e diálogo entre os profissionais normalmente envolvidos, psicólogos, professores, educadores, assistentes sociais, enfermeiros, médicos, juristas, procurando otimizar o contributo das diferentes áreas do conhecimento e da sua interação.
Consideramos que a intervenção se deve basear num trabalho de equipa, composta por profissionais de várias áreas, que trabalhem de uma forma colaborativa, e cuja intervenção é prestada coordenada por um elemento da equipa, o gestor de família, que se deve encontrar sempre apoiado pelos outros profissionais da equipa. Desta forma, a família não é sobrecarregada com visitas de diversos especialistas e pode estabelecer mais facilmente uma relação de confiança com o mediador.
Fomentar a proximidade e a disponibilidade para trabalhar com outros intervenientes, a partir do acompanhamento das famílias aos locais onde os conflitos são resolvidos, próximos das crianças e das famílias, como a escola, os serviços de saúde, entre outros. Neste sentido, outro pilar da intervenção deve ser a articulação e interação com redes formais e informais de suporte (família próxima, amigos, vizinhos, escolas, organizações de saúde e outras estruturas), procurando soluções de apoio e recursos que respondam às necessidades das famílias.
É também muito importante assegurar o seguimento sistemático e a disponibilidade permanente para atender às preocupações das famílias. As situações críticas do dia a dia desta família não são completamente previsíveis. Quando acontecem têm que ser consideradas oportunamente. Deste modo, é fundamental facultar meios de contacto permanente às famílias, aos profissionais e instituições, via email e/ou telefone (sms, voz), de modo que as situações críticas possam ser oportunamente relatadas e ser desenvolvido o necessário apoio à sua gestão.
A alteração de comportamentos da família não é compatível com um contacto episódico, havendo necessidade de criar condições para um acompanhamento regular/sistemático, ao longo da intervenção, onde a iniciativa do psicólogo pedindo que sejam relatados os resultados das estratégias de intervenção combinadas constitui um elemento essencial para o seu sucesso.