Num destes fins-de-semana li Lisboa, Chão Sagrado de Ana Bárbara Pedrosa. Foi um ápice, confinamento, frases curtas, diálogos rápidos. Pelas páginas percorri corpos que se encontram, que têm sexo só porque sim, só porque têm vontade, só porque há um vazio que é preciso satisfazer, sem culpa, sem compromisso, fingindo esquecer que desejam o que todos procuram, desde sempre, significado.
A acção passa-se — parece que estou a escrever uma redacção para a escola — pré-pandemia, entre 2014 e 2018, numa Lisboa em que reconheço as ruas, as esplanadas e até algumas personagens. A determinada altura há uma festa com funk brasileiro, e há “corpos suados todos juntos e a música a soar aos gritos”, “corpos que batem uns nos outros”, álcool, desejo e, de repente, fico cheia de calor, sinto-me sufocar. Não por causa da envolvência da música ou do magnetismo daqueles corpos, mas porque começo a preocupar-me com a higiene das mãos, a falta de máscaras e de distanciamento social. “Ei, não sabem as regras?”, apetece-me gritar. “Parem, parem, estão loucos? Afastem-se! Que não se preocupem com doenças sexualmente transmissíveis já é mau… mas com a covid-19? Querem morrer todos?! Onde é que se desliga a música? Alguém me arranja um microfone, um megafone? Ninguém me ouve?” A tesão esvai-se.
Respiro fundo e, dias depois, volto a sentir-me sufocar quando revejo a capa do PÚBLICO de dia 14 de Maio de 2017, magnífica, com os festejos do Benfica tetracampeão, o papa Francisco em Fátima e a vitória da Eurovisão de Salvador Sobral. Multidões. Tanta gente, tão próxima, abraçada, aos saltos pelas vitórias no futebol e no festival, aos gritos ou a chorar à passagem do papamóvel. Tanta troca de fluidos horroriza-me…
Tudo me angustia. Uns amigos contam como a pandemia nos pode ter unido, que nas primeiras semanas cumprimentávamos quem passava por nós, mesmo desconhecidos — estamos todos no mesmo barco, era o mote lançado pelo Papa. Verdade, confirmo, mas agora, à medida que sabemos mais sobre o já não tão novo coronavírus e sobre a doença, deixei de procurar o olhar do outro, afasto-me, colo-me às paredes dos prédios ou prefiro sair do passeio, mesmo correndo o risco de ser atropelada, para me desviar de quem não traz máscara.
Pelo computador, nas aulas que se dão e se recebem cá em casa, ouço alunos confessarem o medo do regresso ao ensino presencial, que são doentes, que têm pais doentes ou vivem com os avós. Ouço professores com iguais receios e justificações, à procura de formas para eternizar o ensino à distância. Imagino os medos dos pais dos meninos das creches e do secundário, em busca de estratégias para evitar contágios. Em vez de ensinarem como é bom partilhar e brincar com os outros, dir-lhes-ão o contrário. Em que adultos se tornarão? Nos corredores das secundárias não haverá high-five nem partilhas de segredos como o primeiro namorado, porque isso foi há séculos ou nunca aconteceu. E, sem se olhar, sem se tocar, quando sentirão o verdadeiro amor?
E depois, o medo do regresso, com sapatos e roupa deixados à porta de casa, é agora que nos vamos tornar nórdicos, e banhos onde a pele é esfregada milimetricamente, até ficar vermelha. As nossas casas higienizadas, tal como as nossas mãos, os nossos telemóveis. Os acrílicos que se vão espalhar pelas praias e restaurantes; as obras que não vamos folhear nas livrarias; as roupas em que não vamos tocar nas lojas. Os desconhecidos que vamos ter medo de deixar entrar na nossa vida.
Queremos uma vida transformada numa ala hospitalar imaculadamente limpa? Não, porque precisamos de sorrisos, impossíveis de ver por detrás das máscaras; de gargalhadas e gritos, sem medo de gotículas; de nos sentarmos numa esplanada, de nos espojarmos na areia ou na relva sem calcularmos distâncias seguras. Temos de ultrapassar o medo e entrar naquela festa com música funk, em que os corpos batem noutros corpos, em que um amigo passa com uma cerveja gelada e damos um gole, em que dançamos desenfreadamente e no final gritamos e abraçamo-nos, esquecidos de que há um vírus. Mas, por enquanto, não podemos esquecê-lo.