Com novas recomendações por causa da pandemia, a maternidade é vivida a vários tempos em Portugal
Partos programados antes do termo, ausência de companhia, bebés afastados das mães à nascença. A pandemia levou uma nova realidade às maternidades que tentam, agora, arrepiar caminho. Mas, apesar de já haver novas directivas, a maior mantém-se: cada instituição terá de adaptar as medidas à sua realidade.
O que mudou na forma como se nasce em Portugal desde o início da pandemia? “Em qualquer situação obstétrica a primazia é sempre dada ao bem-estar da mãe e depois ao do bebé”, começa por responder João Bernardes, professor catedrático de Ginecologia e Obstetrícia. No entanto, desde Março, juntou-se a esta equação a necessidade de “salvaguardar a saúde pública”, o que acabaria por resultar numa ausência de uniformidade nas normas impostas por cada espaço.
Isto porque, contextualiza o clínico e investigador, em termos físicos e humanos as instituições em Portugal são muito diferentes. Essa é a razão pela qual, explica ao PÚBLICO, “cada equipa deve avaliar a situação local”. Certo é que, nas recomendações publicadas, esta terça-feira, pela Direcção-Geral da Saúde (DGS) continua a ler-se que aquelas “podem ser adaptadas à realidade de cada instituição e à avaliação clínica de cada caso”.
Mas recuemos um pouco no tempo, até meados de Março, quando a atenção à saúde pública transformou as alas de maternidade em quase cenários de guerra, com as equipas a tentarem resguardar-se de possíveis infecções e, ao mesmo tempo, reduzir as probabilidades de contágio das utentes por outros. Por essa razão, qualquer mulher que chegasse a um hospital em trabalho de parto viria a ser tratada como se estivesse infectada — pelo menos, até chegar o resultado do teste à covid-19.
“A introdução do teste rápido veio alterar esses procedimentos”, confirmou a directora da Urgência de Ginecologia e Obstetrícia do Centro Hospitalar Universitário de São João, no Porto, ao PÚBLICO. Agora, a diferença, relatou Marina Mocho, é que a grávida sem teste, em vez de entrar pela zona de admissão, segue directamente para o quarto. “Vamo-nos adaptando à medida que a situação evolui”, explica, acrescentando que “já não há necessidade de indução”, algo optado para “evitar situações de sobrelotamento”, mas essencialmente para averiguar a situação viral da grávida: se infectada ou não pelo novo coronavírus. “Não podemos correr o risco de estarmos infectados”, reforça a médica.
Foi para minimizar esse risco que Eunice Rodrigues, diagnosticada com covid-19, passou quase três horas à espera até entrar no hospital. O parto até tinha sido marcado, dias antes, para ser induzido, mas o bebé acabaria por trocar as voltas à programação do mundo cá fora e decidiu nascer mais cedo. “Foi um parto delicioso: rápido e sem epidural”, relata a mulher, que já tinha três filhas, descrevendo as equipas médicas do São João como “profissionais e rigorosas”. Porém, apesar de terem colocado o bebé em cima da sua barriga e de até terem perguntado se desejava cortar o cordão, o recém-nascido foi logo levado para longe de si, para os cuidados de neonatologia, tendo sido submetido a análises que regressaram negativas.
Nem todos os casos se resolveram por si e a indução acabou por ser necessária — mesmo depois da introdução do teste rápido. Foi o caso de Catarina Soares, cujo trabalho de parto demorou 16 horas. “Tenho noção que o parto poderia ser mais fácil ou menos longo, mas decidi confiar”, descreve com serenidade, apesar de todo o processo ter sido vivido de máscara ou de só ter podido contar com a presença do pai na fase da expulsão.
Direito a acompanhante
A ausência de acompanhante ao longo do processo do trabalho de parto tem sido um dos factores alvo de mais reclamações por parte de mulheres e homens. E as novas recomendações são omissas sobre esta questão. Questionada pelo PÚBLICO, a DGS informou que “para os acompanhantes mantém-se em vigor a orientação” anterior, ou seja, “a presença poderá ser permitida apenas se a instituição considerar que tem asseguradas todas as condições de segurança para evitar o contágio”.
Porém, muitas grávidas e respectivos acompanhantes denunciam “um enorme retrocesso nas conquistas dos últimos anos” e, depois de os relatos se terem acumulado, decidiram criar um movimento cívico e activista pela restituição dos direitos suspensos em contexto de pandemia — “das mulheres grávidas, puérperas, mães e pais, recém-nascidos e, acima de tudo, famílias, durante toda a gestação, parto e pós-parto”.
Reclama-se os direitos “a acompanhante, à liberdade de movimentos e métodos alternativos de dor, ao contacto pele a pele entre mãe e recém-nascido, a amamentação imediata e ao alojamento conjunto de mãe e bebé”, em linha com as directivas da própria Organização Mundial da Saúde (OMS), que sugere cinco maneiras para os serviços de saúde melhorarem o atendimento às mulheres no parto, a começar pela presença de acompanhante.
Além disso, a OMS aconselha que se aceite a posição de nascimento que as mulheres preferem, a treinar os profissionais para cuidados específicos relacionados com a dignidade materna e neonatal, a fortalecer a supervisão e a oferecer estratégias de alívio da dor.
Carla Sousa, uma das grávidas na génese daquele movimento, considera que não chega a existência de recomendações, quando cada hospital tem liberdade para adaptar as mesmas. Segundo a também psicóloga, a ausência de uma directiva comum origina “níveis de ansiedade brutais” nas grávidas, além de considerar incompreensível ter unidades em que o acompanhante nunca deixou de estar presente e outras em que aquele, ainda hoje, se mantém longe do nascimento — algo que a faz considerar vir a ter o seu segundo filho no privado.
Neste ponto, o investigador João Bernardes explica que a ausência de uma linha uniforme está relacionada com as condições materiais de cada maternidade: “Se se tiver mais do que uma mulher na mesma sala e todas estiverem acompanhadas, as distâncias deixam de ser cumpridas, além de, em muitos casos, as casas de banho serem de utilização comum.”
Apesar de compreender as contingências, Catarina, de 27 anos, sublinha as contradições vividas no início de Maio, na Maternidade Alfredo da Costa, em Lisboa. “Não podia haver acompanhante por precaução, mas eu apenas recebia uma máscara [cirúrgica] por dia”, quando as recomendações ditam que esta não deve ser usada por mais do que quatro horas.
Parto programado?
Dos casos que o PÚBLICO teve conhecimento de partos no privado, todos tiveram acompanhante presente. “Fizemos a análise e, com o resultado negativo, foi marcada cesariana”, conta Miguel, 48 anos, que explica que, além do contexto, foram-lhes explicadas razões clínicas para optar pelo procedimento cirúrgico. Durante o período que passou em ambiente hospitalar, nunca saiu do quarto, onde estavam a companheira e a filha de ambos. Essa era a condição para que pudesse permanecer no local.
Também João, de 41 anos, relata experiência semelhante, em que a cesariana, programada às 39 semanas, no Hospital Lusíadas, fez parte de uma decisão que, em parte, já estava tomada pela mãe. Ambos os progenitores salientam o facto de o procedimento ter sido garantia de menos stress e também têm uma percepção semelhante do pós-parto: o contexto de pandemia, com a ausência de visitas de amigos e familiares, assim como o facto de haver menos gente na rua na altura de levar os recém-nascidos às consultas de pediatria resultaram numa vivência da paternidade com menos preocupações e mais serenidade.
Para já, sem dados estatísticos, não há qualquer prova do aumento de cesarianas, testemunha João Bernardes. Porém, admite que este é um assunto a que se tem de prestar atenção, sobretudo quando a cesariana é reconhecida como uma intervenção de risco, estando, segundo a DGS, “associada a riscos de saúde superiores aos do parto vaginal (…): de lesão uretral e vesical, de histerectomia, de tromboembolismo, de complicações infecciosas, de reinternamentos hospitalares”.
Também Alexandrina Mendes, obstetra no Centro Hospitalar Póvoa de Varzim-Vila do Conde, admite que, na sua unidade, os “partos programados terão aumentado”, mas ressalva que “a taxa de cesarianas não aumentou”. Para esta médica, a lidar com partos num centro onde os testes rápidos já existem, mas em quantidades insuficientes e sem laboratório próprio (o que faz com que o resultado demore mais tempo), é necessário que se aumente o número deste tipo de exame de forma a facilitar todo o processo de nascimento.
Todavia, uma preocupação persiste: as directivas contrárias de distintas sociedades. “Enquanto a Sociedade Portuguesa de Obstetrícia e Medicina Materno-Fetal (SPOMMF) aconselha a separar o bebé da mãe que tem um resultado positivo para a covid-19, a [Sociedade] de Medicina Interna diz o contrário.” Nas recomendações da SPOMMF lê-se que “para reduzir o risco de transmissão do vírus da mãe para o recém-nascido, deve considerar-se a separação temporária (após o parto) da mãe” infectada.
Mães e bebés separados
A recomendação da SPOMMF foi levada à letra em algumas unidades que se depararam com parturientes com covid-19, como no caso de Eunice. Após o parto, a mulher ficou internada, enquanto o recém-nascido seguiu para a neonatologia. No documento publicado esta terça-feira, considera-se que “o contacto pele a pele e o alojamento após o parto (separação temporária ou alojamento conjunto) deve ser feita caso a caso, numa decisão partilhada entre a mãe e a equipa dos profissionais de saúde”. Para esta decisão, indica a DGS deverá pesar “a condição clínica da mãe e do recém-nascido, o desejo de amamentar, os recursos existentes para separar o recém-nascido e as condições existentes para um alojamento conjunto em segurança”.
Para Eunice, o risco de contágio horizontal, por menor que fosse, justificou a separação. E, na altura da alta, em que o marido também viria a ter o resultado do teste positivo, o casal regressou a casa sem a criança. “Ficámos os dois doentes e com três meninas (todas com resultado negativo) em casa; não tínhamos condições para cuidar do bebé”, recorda, frisando a dedicação de todos no hospital, com videochamadas e muitas fotografias.
Quando o pai foi declarado recuperado, o hospital considerou que era altura para ir buscar o bebé — algo feito quase contra a vontade da mãe. “Tinha medo”, confessa. O bebé chegou a casa 17 dias após o nascimento, mas quase sete semanas depois da data em que chegou ao mundo os cuidados ainda não foram atenuados, com os resultados da infecção da mãe a manterem-se positivos e os telefonemas diários da pediatria. “Há um cansaço emocional”, concluiu, fruto de um permanente “estado de alerta”.
Para Patrícia Oliveira, de 38 anos e grávida de 32 semanas, este cenário de ter o bebé afastado de si é o mais difícil de imaginar. Apanhada no epicentro do surto em Portugal, já que trabalha como psicóloga em ambiente escolar em Ovar, concelho que esteve sob um cordão sanitário, a grávida combateu a ansiedade recorrendo à racionalidade – ainda que admita que o facto de não ter tido consultas adiadas pela CUF, onde é seguida, ajudou. No entanto, fala de um “reajustamento contínuo — sexta é uma coisa, segunda-feira já é outra”.
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