Histórias de lutos, relações e traumas em tempo de pandemia

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Reuters/SUSANA VERA

“O (processo) de luto é o resultado de uma separação ou uma mudança significativa na relação com alguém ou algo, com quem a pessoa se sente intensamente vinculada.”
Therese Rando (2012)

Esta pandemia está a desenvolver mais risco de lutos traumáticos. Uma perda traumática, de acordo com psicologia do luto, define-se pela presença de vários aspectos relacionados com as circunstâncias da morte: surpresa, impotência, incompreensão, solidão e ambiguidade.

Eis um punhado de histórias de relações reais vividas — e cujos seus protagonistas deram autorização para partilhar — nas últimas semanas:

Surpresa e incompreensão

“Ele andava mal, cada vez pior… tinha falta de ar e tosse. Disse-lhe para ir ao médico naqueles dias. Naquela manhã ligou para o médico de família que indicou para ir ao Serviço de Urgência. Almoçamos. Disse que ia ao hospital. Saiu de casa. A meio da tarde ligou-me que ainda estava para ser atendido... e estas foram as últimas palavras que ouvi. Nunca pensei que aquele almoço fosse a última vez que estivemos juntos.”

Impotência

Uma mãe, já idosa, cuidadora do filho com doença crónica, dedicada e obstinada com os seus cuidados. O filho adoece gravemente e é internado sem possibilidade de receber visitas. A mãe liga para o hospital e suplica por uma última visita ao filho. Após diligências, por se tratar de uma situação de fim de vida, é concedida a excepção. Hoje, lamenta “ele ter morrido sozinho e abandonado... não estive junto dele, nem sei se passou fome... não me deixaram fazer nada... nem me devolveram as coisas dele.”

Solidão

Homem jovem, com uma doença incurável que agrava o seu estado e é internado. Neste contexto é infectado com covid-19 tendo vindo a morrer. Durante o internamento, a mulher teve o primeiro filho do casal e esteve até, ao fim, à espera que o marido visse o bebé. “Tive pena porque ele não viu o filho. Estou agora sozinha com o bebé e parece que estou à espera que ele entre pela porta.”

Ambiguidade da morte e a ausência de rituais fúnebres

A cremação como processo mais aplicado em casos de covid-19 ou de suspeita desta doença, a ausência de velório e o caixão selado sem possibilitar ver o morto, uma última vez, gera situações de ambiguidade perante a consumação da morte.

A morte, por ser tão impactante tem rituais que ajudam a tomar consciência do evento. “Não pude vestir-lhe a roupa que tanto queria que ela levasse. Não pude vê-la, nem sei se morreu.” Outra reacção: “Não pude fazer o funeral que ele queria e merecia.”

Não ter apoio no contexto do funeral: “Estivemos ali sozinhas, com a minha única filha, sem ninguém...”

Não havendo casuística até ao momento estima-se que a percentagem de pessoas com trauma por luto neste contexto seja cerca de 20%, adicionando-se, portanto, aproximadamente mais 10% face a uma situação de normalidade. Mais luto traumático, logo, mais risco de o luto, na sua vertente negativa, ter um impacto mais prolongado. É caso para dizer que estas pessoas terão mais necessidade de apoio ao luto.

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