A porta da rua

Na nova realidade caíram as barreiras e o preconceito em relação ao uso mais intensivo da tecnologia no ensino.

Num romance de Afonso Cruz, o filho pergunta ao pai onde começa o estrangeiro e este, apontando para o tapete da porta da rua, diz-lhe que começa logo à saída de casa. A moderna globalização invadiu as casas com a complexidade do mundo e a internacionalização do ensino superior enriqueceu de novas perspetivas o indivíduo que habitava a (outrora) protegida casa, induzindo novas formas de ver e compreender o que nos cerca. Hoje vemos que a porta da rua também ficou inadvertidamente aberta ao coronavírus e à desgraça que não queríamos.

As distâncias haviam-se encurtado com a facilidade das viagens, com o financiamento de estadias, com a facilidade de comunicação, com o advento das redes sociais e a internacionalização dos grandes grupos de media. O coronavírus acabou por alterar a topologia destas ligações, mas, apesar de viagens e estadias estarem hoje limitadas, o globo nunca esteve tão interconectado.

A internacionalização das últimas décadas, associada à transformação acelerada da nossa sociedade, implicou mudanças imensas no ensino superior, com grande diversidade de alunos, interesses mais abrangentes e formação menos homogénea. Por outro lado, o conhecimento exigido por uma sociedade em transformação deve ser mais flexível, mais adaptável às sucessivas ondas de inovação científica e tecnológica. Métodos e tecnologias de ensino devem ajustar-se. A covid-19 apenas acelerou isso, introduzindo novas linguagens pedagógicas, a digitalização e a intensificação do ensino à distância.

O maior património das Universidades é a sua reputação, construída ao longo dos tempos e baseada na sua contribuição à sociedade. Adaptarem-se aos novos tempos mantendo simultaneamente a qualidade, levou-as a associações seletivas com pares em outras culturas, amplificando o seu impacto social e geográfico. Este mecanismo criou parcerias baseadas na empatia institucional, investigação e valores científicos, interesse em mercados estratégicos e desenvolvimento de formas alternativas de financiamento.

O choque disruptivo da crise pandémica colocou esta evolução em perspetiva, obrigando a coordenar à distância as interações académicas. Hoje queremos parceiros com quem possamos fazer ciência, trabalhar, colaborar em formação – tudo online. Nunca desejaremos Universidades virtuais, mas afastamo-nos cada vez mais do modelo estritamente presencial, da tradição da relação professor-aluno baseada na autoridade da sala de aula. Quando os jovens já absorvem tanto online, essa roupa, cinzenta e antiga, não serve mais.

O futuro das parcerias vai ser condicionado por esta realidade, que vai induzir novas estratégias para conectar instituições de ensino superior, nomeadamente nos contextos financiados pela Comissão Europeia, como a recente iniciativa das Redes de Universidades Europeias. Na nova realidade caíram as barreiras e o preconceito em relação ao uso mais intensivo da tecnologia no ensino. Cresceu a consciência da necessidade de adaptar a linguagem e a metodologia pedagógica, sem descurar os fundamentos do conhecimento. Fornecedores e usuários estão mais confortáveis, implicando inevitável competição no mundo da transformação digital (que todos sabíamos possível, mas que poucos queriam assumir, alegando razões de perfil, princípios e competências). É uma nova dimensão de cooperação no sentido de tornar a Universidade moderna mais inclusiva e sustentável.

É preciso abrir a porta da rua e despedir-se das roupas como de um tempo. Hoje, de um modo absoluto.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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