Em que espaço da civilização queremos estar?
O princípio da presunção de inocência do arguido (necessário e fundamental) acabou por adquirir uma dimensão de totalitarismo, esquecendo a indizibilidade da dor das vítimas.
Ao requerer a publicidade da audiência, para que “a vergonha mude de lado”, G.P. deu o mote para uma diferente abordagem deste(s) “espaços negativos da civilização” (Homi Bhabba). A nomeação pública das vítimas (e as respetivas repercussões sociais que daí lhes advém) descentra o problema sobre construção social do corpo das mulheres, a dominação masculina e as relações de poder.
O problema não é e não está em G.P., pelo que é Dominique Pelicot e todos os outros “Monsieur-Tout-Le-Monde” que retratam aquela cultura que deveriam ser nomeados.
G.P. não foi violada: Dominique Pelicot violou-a!
E o mesmo contou com, pelo menos, outros 50 comparticipantes conscientes e convictos: bombeiros, motoristas de camião, soldados, seguranças, um jornalista, um DJ, etc. e de todas as idades, cujo ponto em comum era o exercício do poder de subjugação e o desprezo pela liberdade sexual e integridade do corpo da mulher!
Daí que surja a pergunta: quem são estes 50 homens que não parece terem-se conhecido no trabalho ou noutros espaços comuns. Mas que, porventura, se encontram(avam) em plataformas digitais mais ou menos ocultas, criando um grupo destinado à prática de tal tipo de crime(s). Não estaremos aqui, então, perante uma verdadeira associação criminosa ou criminalidade organizada? E não estaremos aqui perante a possibilidade de outras vítimas: companheiras, cônjuges, filhas, etc., que iam alternando com G.P.? Ou até perante outras formas de vitimização por difusão de imagens íntimas não consentidas?
Destas perguntas decorrem outras tantas no que concerne aos meios de prevenção, detecção e punição deste tipo de fenómenos (e os sinais estão aí), impreparado que está o sistema policial e judiciário para o efeito.
Neste tipo de crimes eminentemente pessoais (ou pessoalíssimos) ainda imperam hermenêuticas arcaicas em relação à prova ou sobre as formas verbais ou não verbais de comunicação das vítimas com o sistema que, dentro da extenuante colaboração que lhes é exigida, ainda são olhadas com uma desconfiança eivada de pré-conceitos historicamente ultrapassados. O princípio da presunção de inocência do arguido (necessário e fundamental) acabou por adquirir uma dimensão de totalitarismo, esquecendo a indizibilidade da dor e a verdade dos factos e das vítimas; que são violadas por uma segunda vez! À violência dos Dominiques Pelicot soma-se a violência estatal.
Por sorte, o mesmo gravou os crimes. Se não o tivesse feito, como poderia esta (e outras) vítimas situá-los do tempo, descrever o modo e identificar os respetivos autores? Mas também, como interpretar o seu silêncio, “a palavra interditada porque algo lhe faz obstáculo” (SMAD) ou os estados dissociativos decorrentes do trauma?
À vítima entrega-se o ónus da prova dos factos e a exigência de um (irreal) desinteresse em relação ao seu próprio agressor, assim se medindo a magnitude da sua credibilidade. Esquecendo-se, como salientou a procuradora francesa, que o que está em causa não é apenas uma condenação ou absolvição.
Não se trata aqui de crimes do acaso ou de oportunidade, mas da desconsideração sistémica da integralidade dos direitos das mulheres, ocorrida amiúde dentro de portas e a coberto da reserva que tal locus proporciona.
Mas continuamos a apontar e nomear estas vítimas, ainda que na sua demanda de Justiça elas sejam despersonalizadas.
Afinal de contas, em que espaço da civilização queremos estar?
A autora escreve segundo o novo acordo ortogáfico