Coronavírus
Terá a América esquecido a lição da gripe espanhola?
Nos Estados Unidos, hoje o epicentro da pandemia de covid-19, com quase 403 mil infecções e 13 mil mortos — dados da Universidade de Johns Hopkins aquando da publicação desta galeria —, tardou a implementação de medidas de contenção da epidemia. Em Nova Iorque, o estado e cidade onde a situação é mais grave, foram inicialmente aplicadas apenas medidas ligeiras, como a proibição de ajuntamentos públicos e o apelo aos cidadãos para pernanecerem dentro de casa. O cepticismo de Trump, que comparou a morte por covid-19 à morte por acidente de viação, provoca atraso na reacção dos organismos do Estado e na tomada de medidas mais severas para a contenção da epidemia — como o encerramento do comércio e empresas — que não foram, até hoje, implementadas. As escolas estão fechadas, assim como os locais de culto. Restaurantes e cafés também.
Os voos internos mantêm-se e o êxodo em massa da população de zonas afectadas — como de Nova Iorque em direcção à Flórida, o estado famoso por ser “o lar da terceira idade dos Estados Unidos” — propicia a propagação do vírus a outros estados. Para Trump, a prioridade parece clara: “O nosso país não foi feito para estar fechado”, disse.
Em 1918, também tardou a resposta do governo norte-americano ao vírus da gripe espanhola. E, em consequência, como é visível nas imagens de época que apresentamos nesta fotogaleria, também os serviços de saúde entraram em colapso — o que conduziu a um aumento exponencial do número de infectados e de vítimas mortais.
“Creio que a presente reacção dos Estados Unidos [à ameaça da covid-19] sofre com a liderança disfuncional do presidente”, afirma Charles S. Maier, historiador e professor de História Europeia e Internacional da Universidade de Harvard, em entrevista ao P3. “Existe, de tal forma, uma clivagem partidária [no cenário político norte-americano] que o presidente e muitos dos seus apoiantes republicanos acabaram por espalhar uma narrativa de negação [do problema]. A ideia de que os americanos deverão encher as igrejas na Páscoa é uma fantasia que roça o crime de negligência”, reforça Maier. “Espero que a realidade da situação finalmente penetre a Casa Branca.”
Charles S. Maier falou sobre as características da última grande pandemia mundial — a da gripe espanhola, que vitimou, nos Estados Unidos, mais de meio milhão de pessoas num só ano —, para tentar compreender se os actuais líderes políticos norte-americanos terão esquecido a lição de 1918. Os profissionais de saúde norte-americanos, refere o professor, “aprenderam a lição da gripe de 1918”. Tê-la-ão aprendido os seus líderes? Terão esses o conhecimento histórico necessário para saber lidar com uma nova pandemia?
Revisitar o passado e aprender com ele é uma ferramenta para lidar com o futuro. “Não há dúvida de que, quando esta epidemia terminar, iremos ver que diferentes medidas poderiam ou deveriam ter sido implementadas”, diz Maier. O que poderá aprender a América — e os restantes países do mundo — ao rever a lição da gripe espanhola? Nenhum canto dos Estados Unidos, por mais remoto, permaneceu intocado pela gripe espanhola. Nem mesmo Teller Mission, no Alaska, uma pequena e remota aldeia esquimó sem estradas de acesso, que, em 1918, vivia praticamente isolada do resto do mundo. Uma visita do exterior provocou a morte de todos os habitantes, excepto de cinco adultos e 46 crianças órfãs.
A força com que a gripe espanhola atingiu o território norte-americano foi imprecedente. Em 1918, em plena Primeira Guerra Mundial, morreram mais pessoas vítimas do vírus do que em combate. Aliás, o total do número de mortos – 675 mil, só nos Estados Unidos – é superior ao da combinação de vários conflitos armados norte-americanos, nomeadamente da Primeira e Segunda Guerras Mundiais, das guerras da Coreia e do Vietname. No mundo, estima-se que entre 50 a 100 milhões de pessoas tenham morrido — o que hoje, em proporção aos números da população mundial seria o equivalente a 220 a 430 milhões.
Em 1918, os melhores resultados, relativamente ao número de infectados e mortos, foram obtidos pelas cidades que responderam antecipadamente à chegada da epidemia: Saint Louis, São Francisco, Milwaukee e Kansas City. As medidas de contenção e quarentena que impuseram à população reduziram o número de fatalidades entre os 30 e os 50 por cento, em comparação com as outras cidades.
“Cada epidemia traz consigo desafios diferentes”, conclui Charles S. Maier. “As medidas públicas podem sempre ser corrigidas porque existe sempre um período de aprendizagem. Não podemos prender as pessoas em casa antes de a doença atacar, mas quando isso acontece, já é tarde demais.” Talvez a lição a retirar, por parte da América, seja outra, não apenas ligada à pandemia de covid-19: “Espero que, com isto, o povo americano aprenda a não eleger líderes políticos que desprezam o conhecimento científico.”