Desafios da covid-19
No sábado, o jornal PÚBLICO questionava, a propósito da redução abrupta dos episódios de urgência hospitalar – cerca de 60% –, onde estão os enfartes do miocárdio e AVC’s, entre outras emergências reais da vida hospitalar. Já não existem? Precisamos de saber o que aconteceu.
Começo por uma nota e um apelo.
Esta semana de Páscoa é crucial. Maior risco de contaminação pelo incumprimento das regras de confinamento pessoal, pelos esperados contactos familiares na Páscoa sobretudo de quem vive longe e aproveita para matar saudades ou no regresso tradicional às origens. Não haverá forças de segurança em número suficiente para impedir deslocações, que usarão vias secundárias e não as auto-estradas. Só a nossa disciplina, a nossa decisão individual e o nosso empenhamento para o Bem Comum o poderão impedir. Esse é o grande desafio da Cidadania que se quer informada e consequente e um passo fundamental na campanha contra a covid-19.
Nesse sentido, parece-me necessário uma campanha mediática urgente e inovadora, com figuras conhecidas dos media, cinema, desporto, ciência, que no contexto de imagens sugestivas das dificuldades actuais, mas com mensagem de esperança, faça um apelo ao cumprimento das regras de confinamento pessoal. Por favor, poupem ministros, altos funcionários, directores gerais, toda a burocracia do Estado – devem estar exaustos, precisam de concentração, trabalho ou até de descanso!
O fim-de-semana foi de actualização da informação, procurada em fonte segura, de autoria conhecida e com credibilidade. Algumas questões surgem no meu espírito, cuja resposta é outro desafio.
A paragem da actividade económica foi uma imposição do Governo perante um interesse superior da colectividade – Emergência Sanitária, pelo risco de compromisso potencial de vidas. Um valor superior.
Todos os sectores não essenciais foram atingidos – e o Estado? Mantém-se a funcionar a 100%? Não confundir Estado com Governo, Parlamento, Forças Armadas e de Segurança, nem com os serviços de Saúde – essenciais na primeira linha de acção – e professores, sobre quem recai um enorme desafio a curto prazo. Mas pensemos na sua dimensão global, central, autárquico, organismos associados, etc. – está tudo ao activo? Leio que foram suspensas mais de mil acções judiciais provavelmente por necessidade de preservar distanciamento social e prevenir a difusão da doença. Qual a diferença para um sector produtivo não-público obrigado a travagem brusca? E é só na Justiça? E na Administração Pública? Também se preserva o distanciamento social recomendado? Obedecem a uma estratégia clara e conhecida com planos de contingência? Será este novo caminho para a modernização da Administração? Estará em vias de preparação um plano de recuperação dos inúmeros processos atrasados através duma nova metodologia de acção potenciada pela informática e a inteligência artificial?
Alguns comentadores têm comparado, e bem, esta situação com a que se desenrolou no pós-1945, mas sem as mortes e a destruição das cidades e dos bens, assinalando que na França libertada como noutros países o Estado assumiu as alavancas do poder económico. Parece – citando Malraux nas Antimemórias – que o General De Gaulle terá encomendado a cada um dos seus ministros que dissesse ao que vinha e assumisse responsabilidade. Era útil que se copiasse este exemplo, e cada responsável explicasse qual o plano de acção para o seu sector e como vai adequar os recursos a uma situação restritiva actual e no futuro próximo, da gestão de pessoal à dinamização dos sectores sob a sua alçada, se os seus funcionários excedentários terão os mesmos direitos dos outros trabalhadores em lay-off e como se irá planear a recuperação.
Em tempo de emergência não há lugar para privilégios individuais ou de grupo.
Uma questão curiosa suscitada há tempos. Será que em pleno combate se mudam estratégias? Não sou historiador militar, mas não me parece inverosímil que isso tenha acontecido e com bom resultado. Porque o que está em causa é a confiança dos governados no caminho traçado. Veja-se o exemplo da directora-geral da Saúde da Escócia, que cometeu um erro fatal no Reino Unido: furar uma lei e não dar o exemplo. Nem o apoio da First Minister nem o pedido de desculpas público a salvou: pediu a demissão. Provavelmente, seria muito competente, mas esse deslize foi imperdoável. Que se saiba, não se cometeram cá deslizes desta natureza. Houve outros, na área do planeamento, da organização, da execução que poderão comprometer a eficácia da acção e a credibilidade das lideranças.
Senão, vejamos: houve ou não negacionismo da importância potencial do coronavírus com dúvidas de que pudesse atingir a nossa comunidade? Dessa posição resultou ou não atraso no estado de preparação dos serviços de Saúde? E na política de detecção da expansão da doença por falta de kits de diagnóstico? Não se previa que fossem necessários? Para não falar da carência – inequívoca, e denunciada pelas Ordens das Profissões de Saúde desde há semanas – em equipamento de protecção pessoal adequado que permita segurança para os doentes, em primeiro lugar, e depois para os próprios profissionais? E sobre a não decisão do CNS (Conselho Nacional de Saúde) conhecida pelo relatório público divulgado, que foi – e bem – ultrapassada pelo primeiro-ministro que decidiu o conjunto de medidas que se impunham? Ninguém se sentiu desconfortável?
Houve desde o primeiro momento uma cadeia de comando estruturada e abrangente a todo o território nacional que envolvesse, desde o início, as Forças Armadas e os outros sectores privado e social, com tarefas e responsabilidades definidas? Ao contrário do que se afirma, não estávamos a descobrir caminho novo; bastava apenas ver e estudar o que se passara nos outros países. Tivemos moratória de semanas, o que é importante, se existir pensamento a estruturar a acção. E sobre a coerência? Primeiro, a desautorização dos responsáveis locais de Saúde Pública sobre a quarentena de pessoas chegadas ao país pelas fronteiras terrestres, na sequência de posição pública da provedoria de Justiça com o argumento que a decisão teria que ser do Governo central! Então em situação de emergência o médico de Saúde Pública que actua no terreno, não tem poder de intervenção? Não havia manual de instruções, com uma pauta de obrigações e de regras para cada profissional? Não se deveria ter poupado o país a esta descoordenação? E outras decisões, hoje anunciadas para amanhã serem negadas? Parecia noutro país, com outra gente do lado de lá do mar.
Deixem-me ser claro na controvérsia sobre as máscaras: são úteis e necessárias! A lição que vem do Oriente é muito clara. Se não as há para serem usadas, esse é outro problema!
Às vezes mudanças de caminho são necessárias, podem ser estímulo indispensável a que se acertem políticas, se reforce a credibilidade das lideranças e a confiança dos cidadãos.
Finalmente, um outro desafio que se resume na frase: há mais mundo que a covid-19!
No sábado, o jornal PÚBLICO questionava, a propósito da redução abrupta dos episódios de urgência hospitalar – cerca de 60% –, onde estão os enfartes do miocárdio e AVC’s, entre outras emergências reais da vida hospitalar. Já não existem? Precisamos de saber o que aconteceu. Será que esses doentes não procuraram tratamento hospitalar no SNS como era habitual? Estão a ser tratados no sector privado? Morrem antes de chegar ao hospital, aumentando o que foi designado por dano colateral? Na segunda-feira, a London Business School (LBS) tornou público um estudo comparativo da mortalidade global no último mês de Março em comparação com períodos homólogos de anos transactos. Um número maior de fatalidades não explicáveis pelo número dos que morreram por infecção covid-19. Num artigo publicado há quase um mês, chamava a atenção para a necessidade de, a par dos esforços de documentação e estudo da pandemia, se analisarem todas as causas de mortalidade, como fez o estudo da LBS. É fundamental, para percebermos se o nosso sistema de Saúde está ou não a claudicar nos cuidados a outras patologias. E também na segunda-feira, à hora de almoço, passava em notícia de rodapé no jornal informativo na televisão que os enfartes de miocárdio poderiam ir para o Hospital de Santa Marta, porque não estava adstrito à covid-19. De quem é a responsabilidade desta notícia? Refere-se a doentes de todo o país? Do Norte, Centro e Algarve? Ou só de Lisboa e arredores? E só estes é que contam? E as outras situações clínicas urgentes, desde apendicites, abdómen agudo, urgências cardiovasculares, ortopédicas? Não interessam? Qual o caminho recomendado aos doentes?
De facto, houve uma identificação natural dos principais hospitais do país, do Norte ao Sul, com a pandemia, mas o país tem uma rede hospitalar que funciona e de facto tem respondido com eficácia e competência, como tem vindo a ser demonstrado pelo número baixo de fatalidades em comparação com outros países. Por enquanto, e esperemos que se mantenham as previsões favoráveis para futuro próximo.
Faltou claramente a publicitação adequada de uma Carta Hospitalar de todo o país, definindo percursos para os outros doentes, porventura reorganizando e adaptando unidades do SNS às novas necessidades e à prevenção da difusão da epidemia, mas explicando e tranquilizando a população sobre a salvaguarda da capacidade do sistema de Saúde. Acho essencial que se divulgue. E se para as necessidades da pandemia e outras houver necessidade de mobilizar todos os recursos, então haverá que encontrar solução dentro ou fora do SNS.
Não chegámos ainda a uma situação dramática, como Espanha e Itália, onde tenho informação que muitos doentes com patologia cardiovascular urgente – é a minha área de intervenção próxima como cirurgião vascular – não puderam ser tratados, como colegas italianos e espanhóis me comunicaram, agravando os números de mortalidade global.
Espero que as medidas tomadas até agora consigam conter a avalancha. Mas era bom clarificar e assegurar que poderemos responder com eficácia às necessidades.
Finalmente, um outro assunto, para mim dramático, um verdadeiro desafio ético e moral à profissão médica em tempo de pandemia covid-19. No Washington Post de 2/4/2020 eram publicadas chamadas de atenção com estes títulos: Health [Saúde]: Hospitals consider universal do-not-resuscitate orders for coronavirus patients (hospitais aceitam ordens generalizadas de não ressuscitação em doentes de coronavírus); Worry that ‘all hands’ responses may expose doctors and nurses to infection prompts debate about prioritizing the survival of the many over the one (Preocupação que resposta global a todos os doentes possa expor médicos e enfermeiros à infecção desencadeia debate sobre a prioridade no uso dos recursos para todos em detrimento de um indivíduo mais susceptível de beneficiar).
Estas notícias referiam-se ao Northwestern University Hospital em Chicago, uma instituição de grande reputação científica que conheci bem nos anos 80. O responsável médico de Cuidados Intensivos admitia mobilizar os administradores hospitalares para solicitarem autorização do governador do Estado para que a comunidade médica pudesse recusar ventilação assistida a doentes infectados com covid-19, contrariando vontade expressa do próprio ou da família (do-not-resuscitate policy for infected patients, regardless of the wishes of the patient or their family members).
Em situações de urgência ou de insuficiência de recursos, a selecção dos que irão ser tratados é uma decisão agonizante e muito difícil. É baseada em critérios clínicos objectivos, que a Ciência Médica nos proporciona, sabendo que mesmo esses critérios não são infalíveis e que muitos doentes que são tratados para além do que pareceria adequado, acabam por sobreviver. Na minha vida profissional foi frequente esse dilema em doentes com roturas de aneurismas da aorta e há abundante literatura médica sobre indicadores de prognóstico que podem ajudar o médico na decisão. Nunca recusámos operar nenhum doente, nem pessoalmente, nem essa foi política no serviço que dirigi; esses critérios orientavam-nos até para uma explicação à família, em especial se o resultado fosse desfavorável.
Mas nunca estivemos em situação potencial de limite como a actual e como os nossos colegas americanos estão a reportar e os italianos, espanhóis e franceses têm vivido. Há vários programas de educação médica com simulação de grandes tragédias, na qual as equipas são confrontadas com necessidade de decisões imediatas e de escolhas entre os que poderão sobreviver e aqueles que não valerá a pena tratar. A FMUL já tem um Centro de Simulação avançada onde será possível fazer essa educação e treino das equipas médicas, de enfermagem e de socorro e âncora para a discussão destes assuntos também na sua dimensão ética.
Mas o que mais me surpreendeu na restante notícia foi que a discussão era suscitada, não apenas pela insuficiência de equipamento de reanimação, de carência de ventiladores ou de camas de cuidados intensivos, mas, também, pela falta de material adequado para a protecção dos médicos e enfermeiros, pondo em risco a sua segurança e desse modo comprometendo a eficácia dos serviços. É uma realidade, pois se os profissionais adoecerem, toda a capacidade operacional pode ficar comprometida. É um dilema terrível, que as instituições têm procurado ultrapassar definindo novas formas de actuação com maior segurança, sem compromisso do tratamento dos doentes e sem violação do nosso código ético e juramento profissional.
Mas algo mudou nos Estados Unidos que eu conheci. Julgo que espelha bem esse novo espírito a imagem da enfermeira de Chicago completamente destroçada e aterrorizada que anuncia na televisão que se vai demitir invocando carências no equipamento de protecção e medo. Em contraponto, foi consolação a coragem silenciosa e profundamente humana da jovem médica italiana de Pisa que, aterrorizada pelo receio de contaminar o marido e a filha, vive uma vida totalmente separada em casa e continua cumprindo a sua tarefa com altruísmo e dedicação, voltando cada dia a lutar pelos seus doentes na fidelidade à sua missão.
Altruísmo, dedicação e espírito de serviço. Valores da nossa cultura humanista europeia que sobrelevam qualquer utilitarismo pragmático do outro lado do oceano, que são a essência da nossa Medicina e atributo dos médicos e enfermeiros portugueses e europeus e dos norte-americanos que conheci como exemplares e que sempre colocaram o bem dos doentes sobre o seu interesse e segurança pessoal.