Carta aberta à ministra da Saúde: a História julgará quem se absteve ou ignorou
Pergunto: o que terá levado as autoridades portuguesas a agirem como se pensassem que o que surgiu na China e que atingiu Itália poderia ser, aqui, muito diferente? O que a sociedade e os países necessitariam, em momentos tão particulares como este, é de estadistas de gabarito e estatura.
Ex.ª Sr.ª ministra da Saúde,
Conhecemo-nos há anos. Primeiro, nas reuniões da Associação de Administradores Hospitalares, para as quais gentilmente me convidou por diversas vezes, quando V.ª Ex.ª era presidente da mesma. Depois, na reunião do Infarmed, em que interviemos conjuntamente com um destacado membro de uma associação de doentes, para darmos a nossa perspetiva pessoal acerca da política nacional do acesso à inovação farmacológica relativa aos medicamentos para o tratamento dos doentes com imunodeficiência adquirida. Por fim, quando amavelmente aceitou o meu convite para a cerimónia de apresentação do meu livro Ode ou Requiem na sala de sessões do CHS-HSB, em 2015, onde interveio, juntamente com outros convidados, como comentadora da conferência que proferi sobre “O ato médico e a relação médico-doente”, que foi presidida pelo ex-bastonário da OM, Gentil Martins, e moderada pelo meu colega João Sá. Mal imaginava eu que lhe viria a escrever tantas cartas abertas e a remeter tantos mails com vários documentos em anexo. E, muito menos, que as razões fossem as que são, em especial, a que hoje me motiva a fazê-lo desta forma. Publicamente. Porque, por imperativo de ética e de consciência, acho que o tenho que fazer, apesar de há dois dias ter afirmado precisamente o contrário. Contradição? Não, de todo. Antes, adequação e adaptação à realidade emergente.
O certo é que tenho recusado fazer declarações a órgãos de informação ou a dar entrevistas, afirmando sempre que é a si que quereria transmitir as minhas ideias em primeira mão. De resto, a única vez que pretendi publicar um texto de opinião fora da Revista da Ordem dos Médicos foi também a propósito da problemática da saúde do nosso País, mas o editor do semanário Expresso comunicou-me que o espaço eventualmente designado para o mesmo tinha que ser ocupado por uma notícia mais importante de última hora: a do diferendo entre Mário Soares e Manuel Alegre, aquando da pré-campanha eleitoral para a Presidência da República.
Perguntar-se-á: mas o que me fez, então, alterar tão bruscamente a minha postura? Terei eu ficado, subitamente, tão descontente com as suas não respostas, ao ponto de não suportar tanto incómodo silêncio? Ou, antes, que estou enormemente desconsolado com o facto de não ter conseguido ser recebido por si, nas duas últimas semanas, nas audiências que estavam marcadas com a delegação da Comissão de Crise para a CoVID-19 da Ordem dos Médicos, da qual fazia parte? Também não! Da primeira vez, adiou a hora, por ter querido dar, primeiro, pessoalmente, a notícia dos dois primeiros casos positivos em Portugal em conferência de imprensa, e, da nossa parte, havia o compromisso de termos que estar presentes na cerimónia de apresentação do livro A Relação Médico-Doente no Porto, na tarde desse mesmo dia, o que se revelou ser impossível de conciliar. Na reunião da semana passada, porque tive que optar, quase em cima da hora, por não ir, dado considerar ser muito mais importante aceitar ser empossado na presidência da Comissão Institucional para esta matéria, e ter assim mais tempo para operacionalizar o Plano de Contingência do Hospital, porque os primeiros doentes começaram a ser internados nessa mesma madrugada e isso era, certamente, muito mais premente. Mas, então, porquê, afinal?
Porque passei o fim-de-semana em sucessivas reuniões convocadas de emergência no hospital onde trabalho, no intuito de reorganizar escalas de especialistas em cima dos acontecimentos, e de dar apoio, nos intervalos das mesmas, aos meus colegas, no intuito de ajudar a tomar decisões em situações clínicas de grande incerteza e que exigem respostas rápidas assentes em conhecimentos científicos e epidemiológicos sólidos, em experiência profissional e em bom senso. E aí é que está o cerne do problema.
Como dizer a alguém que tem ou não tem uma infeção por este vírus, sem acesso a um resultado fiável e transmitido com a necessária celeridade, quando se sabe, como o disse nos diversos documentos que lhe remeti, que o denominado link epidemiológico iria ter cada vez menos validade e consequente capacidade discriminativa para a decisão correta, e que o contexto clínico é assaz inespecífico? O que verifiquei no dia de ontem, in loco, foi que se passou dos oito para os 80, ou seja, os meus colegas da Urgência, que até agora não suspeitavam desta possibilidade diagnóstica em caso nenhum, passaram subitamente a achar que todos os portadores de febre e de sintomatologia respiratória são suspeitos, e nós, os especialistas, sem podermos garantir se têm ou não essa infeção, mas apenas agir com cautela, concordando com a mera suspeição. O resultado disso é a rápida ocupação das camas da enfermaria, por doentes “suspeitos” e não, apenas, pelos que têm infeções confirmadas. Situação que, ou se criam condições objetivas para inverter com segurança, ou irá causar a saturação rápida da resposta do internamento hospitalar. Isto, sem contar com as dezenas de contactos telefónicos, diretamente para o meu próprio telemóvel, ou para o do serviço, porque as linhas telefónicas da Saúde 24 e do LAM não funcionam, ou as pessoas não confiam naquilo que ouvem, até porque deveriam estar coordenadas e, muitas vezes, dão respostas antagónicas.
Então, como resolver este problema, perguntar-se-á? Como disse nesses documentos, os centros de saúde e não apenas os hospitais terão urgentemente que cancelar as consultas com agendamento regular e, no acaso de não haver qualquer intercorrência clinicamente significativa, serem substituídas por consultas não presenciais, a par do prazo de validade da medicação crónica dever ser estendido no tempo. Sobrariam certamente algumas horas do horário regular dos colegas dos cuidados de saúde primários, de modo a que estes pudessem passar a ocupar-se de várias tarefas de vital importância e impacto, a saber: ajudar a Saúde Pública na triagem dos contactos dos doentes infetados; acompanhamento dos suspeitos que aguardam o resultado confirmatório em quarentena no domicílio; acompanhamento clínico dos doentes infetados, mas sem critérios de internamento hospitalar; realização, centralizada, em instalações próprias que garantam a necessária segurança dos profissionais, da zaragatoa, a todos os portadores de febre e de sintomatologia respiratória, para que se fique a saber, ao certo, se estão ou não efetivamente infetados por este vírus, e se têm ou não critérios clínicos de internamento hospitalar.
A realização dos testes deveria supor que o INSA teria de ter obrigatoriamente técnicos diferenciados a realizar o teste 24 sobre 24h em todos os dias da semana para os doentes internados nos hospitais que ainda não dispusessem desta técnica, e que os doentes de ambulatório o poderão passar a fazer em laboratórios privados com um regime integralmente comparticipado pelo Estado, a ser contratualizado entre os mesmos e o Governo, porque, se não, a perda de tempo, de energias e até de recursos financeiros será tal, para tentar ultrapassar todas estas dificuldades, que só pode redundar num enorme prejuízo para todos e numa maior disseminação das infeções na comunidade.
É imperioso constituir uma reserva de medicamentos, de reagentes, de meios de proteção individual e de ventiladores, porque não é em cima dos acontecimentos, como está a acontecer, que se vão inventariar as vagas existentes de Cuidados Intensivos no País, ou se vai resolver a rotura de stocks. Impõe-se providenciar, ainda, o acesso aos fármacos que se sabe serem eficazes, embora mediante utilização off-label, ou dos que podem ser importados com o recurso a AUEs, integrados numa norma de tratamento nacional que infelizmente não existe. De igual forma, não se podem também realizar descentralizadamente os testes laboratoriais específicos, enquanto não se resolver a generalizada falta de reagentes imprescindíveis no mercado. É tudo isso, mais a definição concreta do tipo de complementaridade que os hospitais privados, das Forças Armadas e do setor social (Cruz Vermelha e Misericórdias) podem assumir, bem como a definição do papel a desempenhar pelo INEM e pela Proteção Civil, tal como, finalmente, a garantia da cobertura, pelo Estado, de indemnização, em caso de doença por acidente de trabalho, invalidez ou morte (que deveria incluir os voluntários que responderam ao recente apelo do bastonário da Ordem dos Médicos), que deveriam constar do Plano Nacional de Contingência só recentemente publicado, mas que pela sua omissão me faz ter de o classificar como sendo uma autêntica vacuidade, apenas cheio de inconsequentes vulgaridades. Pergunto: o que terá levado as autoridades portuguesas a agirem como se pensassem que o que surgiu na China e que atingiu Itália poderia ser, aqui, muito diferente?
Por mais que afirmem diariamente que a situação está controlada e que não há razão para pânico, isso de nada vale, nem que o repitam a cada minuto. Porque, quando se disse, por exemplo, que havia 2000 camas de isolamento disponíveis, só se evidenciou que nunca existiu a mínima noção e não se tentou indagar previamente qual era a realidade objetiva do País. Esse é, quando muito, o número total de quartos com uma única cama nas enfermarias de todos os hospitais públicos, incluindo todas as especialidades (psiquiatria, pediatria, obstetrícia, oftalmologia, otorrinolaringologia, etc.), porque as que têm isolamento com pressão negativa são apenas de umas escassas dezenas, sendo que somente uma ínfima parte é em Unidades de Cuidados Intensivos. Quem preconizaria convictamente o internamente seguro destes doentes nesses quartos? Desconhecerão que, no serviço que dirijo, por falta de alternativa, ainda temos, numa mesma enfermaria, embora em quartos com pressão negativa, doentes suspeitos de estarem infetados com CoVID-19, doentes com infeção já confirmada e doentes com tuberculose em fase bacilífera?
Os políticos deveriam, antes, aprender com os médicos. Estes têm como intemporal imperativo ético falar a verdade aos seus doentes, mas nunca deixando de os confortar e de lhes saber induzir esperança. Mesmo que a doença seja um cancro, a sida ou outra qualquer em que o prognóstico seja muito reservado, bastante estigmatizante ou deixe graves sequelas funcionais. E não é por tal que os doentes desistem de lutar ou se suicidam. O que a sociedade e os países necessitariam, em momentos tão particulares como este, é de estadistas de gabarito e estatura. Que abissal diferença entre Mandela, Ghandi ou Churchill, comparativamente a Trump, Bolsonaro ou Duterte e outros quejandos. Dizer a verdade, prevenir e atenuar os impactos negativos previsíveis e, simultaneamente, ser capaz de galvanizar a solidariedade dos cidadãos e da sociedade, é o que é necessário fazer. Não, nunca, tratar os cidadãos como coitadinhos ou como incapazes de percecionar o perigo, ou de reagir adequadamente perante um perigo que reconheçam, ainda que por mero instinto, como realmente ameaçador.
A verdade é que os médicos (e os restantes profissionais) têm sido imensamente desconsiderados pelos sucessivos governos e ministros. Por exemplo, parametrizaram-se os programas de registo eletrónico de assiduidade apenas para se contabilizarem os escassos minutos em que o profissional chegou atrasado, mas não para as inúmeras horas semanais que o mesmo fica, no centro de saúde, depois de terminar o seu horário oficial, a fazer registos clínicos, requisição de exames auxiliares de diagnóstico ou o registo do seu resultado no processo individual de cada doente, renovação de receituário, ou relatórios para as inúmeras entidades oficiais, só para poderem aproveitar integralmente os escassos 15 minutos disponíveis para a consulta médica, e terem de ouvir dizer, depois, que o fazem apenas porque querem e que, como tal, nada há a remunerar; ou ainda que, por cada papel de receita que não se consegue emitir informaticamente, por deficiência do sistema operativo, se tem de obter um código individualizado por via informática, para o seu correto preenchimento manual, o que acarreta uma enormíssima e obscena perda de tempo, em vez de se estar a tratar efetivamente do doente. Estes são, pois, apenas dois exemplos daquilo que jamais se deveria ter passado e que espero que termine, em definitivo, após esta crise.
Pedir àqueles que ajudem agora a combater esta pandemia, fazendo os enormes e inerentes sacrifícios que puderem, acenando com o pagamento de um número ilimitado de horas extraordinárias que antes se diziam ser desnecessárias, é desconhecer o âmago do código de ética médica. É que, verdadeiramente, tal nem sequer teria sido necessário, porque um verdadeiro médico está sempre de serviço, sobretudo quando se trata de um cataclismo em que a condição de Ser Humano e de Médico se sobrepõem à de especialista de uma qualquer área, para que todos possamos ajudar a combater eficazmente esta calamidade que afeta toda a Humanidade. Foi com este notável espírito de integridade cívica que fiquei a saber que alguns colegas com quase 90 anos, mas bastante lúcidos, se ofereceram como voluntários, para o que fosse necessário, tal como me disse, genuinamente comovido, o maior amigo do meu pai, António Castro Ribeiro, a quem eu dediquei o referido discurso de apresentação do livro da Ordem dos Médicos, recentemente realizado na cidade onde tenho muito orgulho de ter nascido.
É precisamente isso o que vou efetuar a partir de amanhã, fazendo constar aos meus doentes o seguinte: “Queria comunicar-vos, com o coração bem apertado, mas com muita lucidez e determinação que, por imperativo de força maior, terei de deixar de vos receber em consulta, como sempre o fiz desde que terminei a minha especialização, já lá vão muitos anos. Esta atividade, certamente uma das mais nobres que um médico pode desempenhar, só poderá ser interrompida quando algo se torna, ainda, muito mais importante. Para mim. Para vocês. Para todos.
Assim, terei que passar a estar integralmente disponível para uma nova e muito absorvente tarefa de enorme responsabilidade: coordenar a Comissão de Contingência do meu hospital no combate à SARS-CoV-2, causada pela infeção pelo vírus CoVID-19, batalha que não se pode, de modo algum, perder. Esta terrível pandemia mundial irá começar a atingir proporções crescentes e com consequências dramáticas para muitos cidadãos do nosso País, o que exige que, à semelhança dos exércitos em tempos de guerra, o general vá ter de desempenhar as funções do soldado raso do seu batalhão. É o que vai acontecer comigo a partir da próxima 2.ª F.ª, dia 16 de março.
Irei passar a estar 12h consecutivas de 2.ª a 6.ª F.ª no hospital, totalmente absorvido em tarefas de coordenação e, aos sábados, 24h consecutivas a tratar os doentes infetados por aquele vírus, na enfermaria do serviço que dirijo. Passada esta tormenta, que ninguém é capaz de antever quanto tempo irá durar, tudo voltará à normalidade. Retomarei as consultas, quer no hospital, quer no consultório, bem como tudo o resto que é usual fazer. É fundamental que todos acreditem que isso é possível. Eu e vocês. Mesmo sabendo que, na realidade, tal pode, eventualmente, não vir a acontecer para alguns de nós, como se tem passado por esse mundo fora com muitas centenas de cidadãos, em especial no seio dos profissionais de saúde.”
Sei que, como me disse uma vez um colega e amigo que muito prezo, Jorge de Melo, sou daqueles que têm “urticária na alma”. Apenas pretendo, com esta iniciativa, que os membros da hierarquia ministerial e os restantes governantes pensem bem naquilo que Albert Einstein quis dizer quando sentenciou que “nem tudo o que pode ser contado conta, e nem tudo o que conta pode ser contado”. Desejo, com muita sinceridade, que este penoso período que o País e os Portugueses irão atravessar culmine, tal como os italianos o fizeram tão comoventemente, com todos nós a cantarmos o Hino da nossa amada Pátria, de mão dada e irmanados no mesmo sincero sentimento de contribuirmos para preparar a próxima epidemia de uma forma mais adequada, porque ninguém duvida que isso ocorrerá, embora não sendo possível antever quando, onde e como será.
Quanto mais não seja, para homenagearmos condignamente o meu colega oftalmologista chinês, Li Wenliang, que as autoridades oficiais do seu país, primeiramente, tentaram silenciar, colocando-o num cárcere, e que, finalmente, pagou esse atrevimento com a própria vida, mas que nunca hesitou em denunciar as insuficiências com que se deparou no combate a esta pandemia, desafiando o torpe negacionismo então vigente. Não é possível esquecer que a China perdeu à volta de um mês para fazer o reconhecimento oficial de que uma nova infeção tinha começado a emergir, tal como em Portugal se levou um idêntico período de tempo a tomar as medidas realmente necessárias, desde que a doença começou a fustigar a Itália. Como é usual dizer-se: a história repete-se. Até quando? E com que consequência, afinal?
Concluindo: mais do que um dedo acusatório, pretendo antes alertar as consciências, na sincera esperança de que desta vez irei mesmo ser ouvido. Para bem de todos. Enquanto é tempo!
Com elevada civilidade,
José M. D. Poças
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico