O regresso da macroeconomia. Por um “Plano Draghi” europeu
A dimensão do financiamento necessário para fazer face às necessidades de combate à pandemia e de resposta à quebra da atividade económica não se compadece com mecanismos tradicionais e limitados, como os atualmente existentes, ou com a simples flexibilização das regras do Pacto de Estabilidade e Crescimento.
A microeconomia e a “má economia”
Recordo-me ao longo da década de 90 e antes da crise de 2008-2009, nos debates sobre economia que então se travavam, alguns colegas economistas dizerem que só conheciam duas economias: a microeconomia e a má economia.
Era uma época em que a macroeconomia de inspiração keynesiana tinha caído em desgraça, muito em resultado das crises dos anos 70 e dos anos 80, em que o intervencionismo económico do Estado cedeu o lugar ao liberalismo económico, enquanto referência dominante da teoria económica, na sequência da sua incapacidade de fornecer à política económica instrumentos adequados para combater o fenómeno inflacionário e sobretudo para explicar a coincidência que então se verificou entre recessão e inflação.
A macroeconomia de referência keynesiana viu o seu espaço de influência reduzido, resistindo como pôde nas academias e nalguns espaços da intervenção governamental, mas tornando-se incapaz de se opor, no plano das políticas, à restrição do papel económico do Estado, à liberalização acelerada do comércio internacional e dos movimentos de capitais, à concentração do setor financeiro a nível global, à retração dos direitos sociais, etc., que, entretanto, se afirmou.
A “boa economia” transformou-se em “má economia” e a microeconomia tornou-se a única referência respeitável.
A crise de 2008-2009
A eclosão de uma nova crise de proporções inéditas em 2008-2009 veio, de novo, baralhar tudo.
Os receios de se estar em presença de uma nova crise de proporções e efeitos semelhantes aos da crise de 29 rapidamente se apossaram dos responsáveis económicos e políticos da altura e as primeiras medidas adotadas foram, claramente, de tipo keynesiano.
Pensou-se que Keynes estava de volta, dando sentido a um movimento pendular de substituição da referência neoclássica, à semelhança do que tinha acontecido com a teoria keynesiana, na sequência da crise de 1973-1975, mas isso não passou de uma ilusão. Após uma curta recuperação das economias em 2010, rapidamente se regressou à ortodoxia dominante. Sobretudo no espaço da zona euro, com a transformação da crise económica e financeira numa crise de dívidas soberanas que em grande parte tinham sido geradas, precisamente, pelas medidas de resposta à crise que evitaram que ela se tornasse rapidamente numa catástrofe global.
A história que se seguiu é do conhecimento geral: políticas pró-cíclicas, tentativa de relançamento através da oferta, com prioridade ao aumento da competitividade, redução de custos, aumento do desemprego, etc., mergulhando a economia numa recessão prolongada de que, verdadeiramente, nunca chegou a sair até aos nossos dias.
No caso da zona euro não se pode deixar de destacar o papel de Mario Draghi. É inquestionável que se deve à sua ação decidida e despida de preconceitos teóricos a contenção da derrocada da zona euro e da economia europeia, permitindo a frágil recuperação económica que se seguiu à recaída de 2011-2012.
É reconhecida a importância da sua afirmação de 2012 de que tudo seria feito para salvar o euro e como isso serviu de mote para o reforço da chamada política monetária não convencional que acabou por se transformar numa forma criativa de política económica keynesiana. Não apenas ao exercer bem o seu papel enquanto política monetária, mas ao substituir o papel da própria política orçamental, auto coartada na sua capacidade e eficiência pela aplicação generalizada de medidas restritivas que contribuíram para o prolongamento da recessão.
A macroeconomia estava de volta, ainda que disfarçada de política monetária não convencional e limitada na sua efetividade pela contínua oposição das posições mais ortodoxas, com a Alemanha à cabeça.
Um “Plano Draghi” à escala europeia
E chegamos a 2020 e à ameaça de uma nova crise económica de “proporções bíblicas”, para utilizar a expressão do próprio Draghi no artigo publicado no Financial Times de 25 de março.
Está lá tudo o que deve ser feito na situação atual e escrito com a autoridade de alguém a quem se deve o resgate da economia europeia num mar económico encarapelado pelas contínuas posições “repugnantes” de que falava há poucos dias o nosso primeiro-ministro.
A primeira ideia avançada é simples e consiste em assegurar os fluxos de rendimento e o emprego, garantindo a injeção da liquidez necessária na economia e o financiamento de rendimentos à população afetada pela paragem em vários segmentos da atividade económica. Será este fluxo de rendimentos que assegurará o circuito económico e a continuação do funcionamento das empresas e das relações económicas fundamentais que alimentarão a continuação da necessidade de compras e vendas mútuas, do investimento, etc.
Mas há uma segunda ideia que deve ser retida, a de que as economias e as instituições europeias se debatem com a necessidade de repensar o seu papel. Não é possível dar resposta aos problemas e aos desafios que se colocam no presente com as regras e os princípios que se utilizaram até aqui e que demonstraram estar errados.
O que se passou com a última reunião do Conselho Europeu é dramático. O que a Europa menos precisa é que por causa da insanidade e incompetência dos atuais líderes se destrua um projeto que demorou décadas a construir e que mais do que nunca se torna necessário para fazer face a um problema que é comum, que afeta todos por igual e que só com o contributo de todos poderá ser invertido.
E não há como fugir à realidade. A dimensão do financiamento necessário para fazer face às necessidades de combate à pandemia e de resposta à quebra da atividade económica não se compadece com mecanismos tradicionais e limitados, como os atualmente existentes, ou com a simples flexibilização das regras do Pacto de Estabilidade e Crescimento. Os défices e as dívidas irão disparar e o seu financiamento terá de ser a muito longo prazo e coberto pela emissão monetária do BCE, o que, aliás, já está a ser feito há muito tempo, embora por portas e travessas várias. E a inflação é o melhor que poderá acontecer à economia, ante a perspetiva de destruições “bíblicas”, ou de uma derrocada total do projeto europeu.
E, com a consciência de que os contextos são diferentes e, sobretudo, de que não existe atualmente uma liderança internacional à altura do desafio, faz sentido invocar o Plano Marshall. O seu sucesso efetivo deve constituir uma referência para o lançamento de um Plano Europeu de Recuperação Económica que, para incorporar a especificidade da situação atual e a experiência de referência conduzida pelo anterior presidente do BCE, se deveria designar de “Plano Draghi”.
O artigo do Financial Times é uma lição de macroeconomia aplicada às exigências da situação atual.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico