Sim, manter a quarentena
Moral aparente dos factos: quanto mais depressa se agir nas medidas de contenção, mais leve a pancada do vírus e mais depressa nos vemos livres da pestilenta covid. Por mim, vou manter a esperança nos dois meses.
Quando me convidaram para escrever uma coluna de opinião no PÚBLICO, já pairavam no ar as maldosas gotículas com coronavírus. Mas não imaginei que iria escrever a primeira numa espécie de ambiente de crónica em tempos de cólera. Num cenário distópico em que até os meus pais — que se recordam vagamente da Segunda Guerra Mundial quando crianças — descrevem prosaicamente com um “nunca vimos nada assim”.
Uma doença que parece saída da imaginação de um cientista louco nazi em busca de produzir a raça perfeita, descartando os fisicamente mais frágeis: ataca os mais velhos, os que sofrem de um rol de doenças, os que têm imunidade comprometida. Um político ou um economista psicopata bateriam palmas — afinal, o coronavírus está decidido a trazer poupanças às estafadas seguranças sociais europeias e aos sistemas de saúde, livrando-os das despesas com pensões dos mais velhos e tratamentos dos doentes crónicos.
Inevitavelmente — que a natureza humana tem o lado lunar, como diz o cantor —, surgiu quem contestasse a quarentena geral em que vivemos em prol dessa missão nobre de que nenhum de nós tinha ouvido falar há um par de meses: achatar a curva. E não esgotar a capacidade de resposta do SNS. E, em resultado, menos mortes.
Não tenho vontade de ser lírica. A quarentena generalizada tem custos económicos grandes e não pode permanecer pelos catastrofistas seis meses, ou 18 meses, que alguns epidemiologistas de sofá aventam. (Desde logo, porque a saúde mental do continente europeu inteiro não resistiria.)
A melhor parte é que provavelmente não terá de se manter o atual estado draconiano de coisas por muito tempo. Wuhan precisou de sete semanas para conter o contágio do coronavírus depois de impor quarentena estrita. Os países mais rápidos a reagir — Hong Kong, Taiwan e Singapura — não necessitaram de impor quarentena obrigatória. (Pelo menos, ainda não.) Em Hong Kong, as aulas foram suspensas, os funcionários públicos colocados em teletrabalho. Taiwan fechou as escolas por duas semanas somente. As memórias da SARS em 2003 garantiram que todos se esforçassem por parar o contágio. Isolamento social, máscaras, desinfeção de mãos, medição de temperatura em todo o lado, vigilância de quem está em quarentena através de apps. Moral aparente dos factos: quanto mais depressa se agir nas medidas de contenção, mais leve a pancada do vírus e mais depressa nos vemos livres da pestilenta covid. Por mim, vou manter a esperança nos dois meses.
Porém, talvez a quarentena geral faça sentido até economicamente. Os custos económicos de uma pandemia à solta também são de monta. O português Sérgio Rebelo, da Kellogg School of Management, publicou por estes dias, com outros dois economistas, o estudo The Macroeconomics of Epidemics, onde concluíam que os custos económicos de manter a quarentena, levantando-a gradualmente quando as taxas de infeção baixassem de modo a criar imunidade de grupo, eram menores que os de uma pandemia sem medidas de confinamento ou com o levantamento abrupto da quarentena antes da imunidade adquirida. Usaram valores económicos normalmente aceites para uma vida humana, bem como a diminuição no consumo e nas horas trabalhadas (i.e., a crise) que a doença, sem quarentena, geraria. Concluem ainda que no longo prazo uma economia com quarentena recupera melhor do que uma economia onde ocorreu grande número de mortos. Ficaram de fora os custos da reorganização de trabalho que as mortes obrigam ou os custos das famílias e do Estado com os tratamentos de muitos mais infetados.
Há muitas cogitações filosóficas por aí sobre as mudanças que esta experiência de pandemia nos trará. Calhando, pode servir para mostrar, definitivamente, que não estamos no tempo dos caçadores-recoletores, sendo o vigor físico a maior medida de valor de uma pessoa e descartáveis os mais fracos. No mundo onde a criatividade e as capacidades intelectuais são os marcadores de diferença, a diabetes ou uma condição cardíaca não são deficiências profissionais. Num tempo em que a memória histórica de épocas tenebrosas — ou das risonhas que se lhes seguiram —, é fundamental para lidar com as ameaças populistas e nacionalistas, como podemos prescindir casualmente das lições, testemunhos e experiências dos mais velhos? (E, já agora, quais os custos económicos para as mães e pais de retirar o apoio cuidador que avós, dos dois sexos, dão aos netos? De numerosos lutos simultâneos? De um evento com número avassalador de mortos que se torna um trauma coletivo?)
Nos Estados Unidos, quando Trump declarou que queria a economia a funcionar pela Páscoa, que o país não foi feito para ficar parado e demais conversa do nacionalismo-contabilista — entretanto já infletiu em variadas direções —, um governante do Texas veio prontamente declarar na Fox News que os mais velhos deviam estar dispostos a morrer para não prejudicar a economia. A expressão “matar a avozinha pelo mercado de capitais” foi abundantemente usada no Twitter para descrever tão feliz ideia. Em tempos, pediu-se aos jovens para morrerem pelos ideais democráticos (ou assim diziam). Agora, numa evolução civilizacional, recomendam aos idosos que se sacrifiquem no altar da bolsa de valores de Nova Iorque.
Por cá, também já vários comentadores contestaram nos media a quarentena geral e a paragem da economia. Li, de um, elogios à coragem de Bolsonaro (de proferir as insanidades que até o seu Governo boicota, presumo). Outro reclama que quarentena não é vida. De facto, quem aguenta estar 15 dias sem jantar fora? Outro ainda garante que a covid é menos mortal que a gripe comum — viva, já temos negacionistas do coronavírus, que não somos menos que os outros. Era inevitável no tempo das redes sociais. A Coreia do Sul é brandida como exemplo — não se referindo que as escolas estão fechadas desde o início do ano nem a pequeníssima participação das mães no mercado de trabalho, podendo assim ficar em casa com os filhos sem perturbar as empresas onde já normalmente não estão.
A quarentena é péssima, concedo (e suspiro quase em desespero). Mas é o que temos. E as respostas alternativas são muito mais custosas. Inclusive com o critério do índice da bolsa.
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico