Faltou-nos o ódio. E agora?
Este intervalo das nossas vidas chegará ao fim. Será longo, penoso, incerto. Que enquanto ele dure sejamos congregados pela lucidez, em vez nos deixarmos contaminar, irremediavelmente, pelo vírus do medo. É que parecendo que não, há melhores maneiras de nos mantermos iguais. A melhor de todas elas é permanecendo livres.
A força do decreto apenas o confirmou. Vemo-nos confinados por ele, um espaço vago e muito mais estreito do que aquele contido pelas quatro paredes das nossas casas. Achávamo-nos conhecedores das suas circunstâncias. Dantes, um intervalo tinha propósitos claros: confortar o estômago, distender os músculos tolhidos pela inacção, recuperar o fôlego, por vezes, esquecer. Acresce que um intervalo convergia para um rigoroso imperativo chamado fim. Quando não tinha duração conhecida, púnhamos-lhe nós o termo, assim, do nada, fingindo uma autoridade que nunca tivemos perante o tempo. Se preciso fosse, acrescentávamos-lhe uma fórmula: muda aos cinco e acaba aos dez. Agora, apercebemo-nos da dimensão de tamanha fraude. Seja quando for que ele tenha começado, o tempo ganhou-nos sempre.
Durante este intervalo, damos por nós bastante unidos, embora cada qual em sua casa, enclausurados numa espécie de trincheira improvisada. Embora não se trate de uma guerra, para lá dessa trincheira não encontramos outro como nós a fazer as vezes de inimigo, quer se persiga a vida concreta, dos factos e das respectivas consequências, quer se opte pela fantasia com que nos desafiamos perpetuamente. Sem outro em quem colocar as culpas, de repente, faltou-nos o ódio. O ódio que cada um estimava como lhe conviesse, uns alimentando-o, outros obviando-o, os intermediários vergando-se a ele, à procura de audiências ou apostados em enganá-las.
Passam-se as horas, os dias, contam-se já as semanas e assim, conscientes de que não vivemos uma guerra, mas que de que também não nos move o ódio como dantes, afinal o que nos resta, enquanto perdura este interregno? Conformámo-nos a uma inesperada, mas estreita semelhança. Depressa, porém, começámos a estranhar-nos, deste modo, demasiado iguais e demasiado cientes dessa igualdade, sem nos conseguirmos rir de tão hilariante contradição, quando há meia dúzia de dias nos detestávamos mutuamente. Conhecemos a senha para esse riso reprimido e antes que a revelemos, distraímo-nos como podemos. Comovemo-nos com as cantatas pelas varandas italianas, francesas, espanholas. Lamentamos as marchas tão fúnebres, quanto assépticas, na Lombardia. Espantamo-nos com as ruas desertas de Nova Iorque. A actualização noticiosa seguinte restabelece o estado de emergência. Somos, de novo, colocados em suspenso, sem prazo, mas absolutamente cientes da verdade. A verdade é que deixámos de estar separados pelo ódio para nos unirmos no medo. Talvez não pudesse ser de outra forma, perante um inimigo que não é como nós, mas sim oculto e imprevisível, apostado em ameaçar a nossa sobrevivência e a daqueles que mais amamos.
Enquanto decorre este intervalo nas nossas vidas, o mais urgente não merece discussão: prevenir o contágio, recuperar os doentes, apoiar as suas famílias, reconhecer o trabalho do pessoal de saúde, protegendo-os o mais possível, manter claro que, apesar da incerteza, nunca foram tantos e tão globais os recursos para fazer face a uma pandemia, falar verdade e gerir expectativas, acorrer aos danos económicos já em curso, defender o emprego, coordenar respostas, no que à política europeia diz respeito. Tudo isto terá de ser resolvido com a máxima competência, com o intuito imediato de reduzir o sofrimento e o fito mais longínquo de sedimentar a confiança nos nossos representantes e nas instituições. De outro modo, no final deste intervalo teremos feito pouco, muito pouco, proporcionando que seja reposto o ódio crescente que nos dividia, no lugar do medo que agora nos une. Esse risco existe, é real e jamais será antídoto para os problemas que iremos enfrentar. Pior: numa quebra de confiança generalizada nas democracias, uma vaga renovada de ódio não se limitará a uma reiteração daquele dos tempos mais recentes, feito de parangonas escandalosas ou injectado nas caixas de comentários em doses equivalentes de veneno e auto-complacência contra a classe política, os migrantes, a ciência e os factos. É que esta pandemia alinha-se, espantosamente, com as palavras de ordem de Orbán, Salvini, Le Pen e outros membros do alto comissariado do ódio. Controlo de cidadãos, fecho de fronteiras, limitação aos fluxos de bens, todas essas formas de proibicionismo e delimitação de liberdades que acabarão por contribuir para cessar a pandemia. Não custa, pois, imaginar a respectiva arguição do alto comissariado do ódio, propondo que o securitarismo e o fim da multilateralidade trariam a segurança duradoura a cada país e o bem-estar das suas populações.
Este intervalo das nossas vidas chegará ao fim. Será longo, penoso, incerto. Que enquanto ele dure sejamos congregados pela lucidez, em vez nos deixarmos contaminar, irremediavelmente, pelo vírus do medo. É que parecendo que não, há melhores maneiras de nos mantermos iguais. A melhor de todas elas é permanecendo livres.