BCE paga dívidas das empresas: proposta não-ortodoxa para tempos não-convencionais
Precisamos de uma medida radical de política monetária por parte do BCE que nunca foi tomada: impressão de moeda para haver empréstimos não-reembolsáveis às empresas que lhes permitam continuar a pagar pontualmente aos seus fornecedores.
Tanto a mitigação dos efeitos recessivos da pandemia como a robustez e a velocidade da recuperação económica que se lhe seguir dependem crucialmente da preservação das relações contratuais na economia. Há um aspecto vital para essa preservação que as medidas de política que têm sido tomadas ignora: necessidade de amortização das dívidas privadas e públicas que se anunciam. Precisamos de uma medida radical de política monetária por parte do BCE que nunca foi tomada: impressão de moeda para haver empréstimos não-reembolsáveis às empresas que lhes permitam continuar a pagar pontualmente aos seus fornecedores.
O receio com as consequências sociais da crise económica que inevitavelmente surgirá é real e está a crescer. Importa perceber a razão e pensar se as medidas de política orçamental e política monetária que têm sido anunciadas quase todos os dias um pouco por todo o mundo estão dirigidas à raiz do problema e serão suficientes. Neste artigo, conclui-se que, embora tenham a direcção certa, precisam urgentemente ser complementadas com uma medida não-ortodoxa de política monetária a tomar, pelo menos, à escala da área do euro.
Se as relações contratuais na economia forem mantidas durante o período de confinamento social, não só os efeitos no nível de rendimento das famílias serão minimizados durante esse período, como a velocidade e a extensão da resposta do aparelho produtivo à reignição da actividade após o mesmo serão maiores. Para tal, não podemos destruir capital, no sentido lato do termo: humano, físico e social. É essencial que as empresas continuem a pagar as suas obrigações contratuais, sejam elas salários, rendas, juros, bem como as aquisições de matérias primas e bens intermédios. Se isto acontecer, as cadeias de fornecimento manter-se-ão conectadas e prontas a ser reactivadas assim que as condições sanitárias permitam o funcionamento de toda a economia. Sabemos por experiência própria da crise económica anterior (2008/2012) que as relações contratuais não foram preservadas: lojas e fábricas fecharam, talento humano foi despedido e espalhado pelo mundo, laços quebrados entre clientes e fornecedores. O impacto social durante a crise e o lento período de recuperação foram agravados pela destruição dos vínculos contratuais. O mesmo parece que irá suceder, mau grado as medidas corajosas e relativamente rápidas que têm sido introduzidas pelos governos e bancos centrais. É que a escala da recessão e a dimensão das medidas anunciadas são muito maiores do que no passado e com uma necessidade simétrica em todo o mundo. Sim, a simetria do presente choque económico-sanitário é um dado novo a ter em conta.
As medidas de política que têm sido tomadas têm a direcção certa, mas não creio que bastem. Começo por as caracterizar brevemente. Na frente orçamental, não temos função de estabilização macroeconómica no orçamento da União Europeia. Muitos cépticos ainda irão lamentar a oposição obstinada a um avanço neste sentido. O poder de fogo nesta frente estará então limitado à capacidade dos orçamentos públicos nacionais. Os estímulos anunciados até agora repartem-se pelas seguintes tipologias: adiamento no pagamento de obrigações fiscais e contributivas, comparticipação no pagamento parcial de salários e emissão de garantias a empréstimos que as empresas venham a contratar na banca ao abrigo de linhas de crédito específicas. Fala-se que estará em preparação pelo Ministério das Finanças e pela banca o estabelecimento de um período de carência de juros e capital (moratória de crédito). Na frente monetária, o Banco Central Europeu (BCE) elevou o tecto para o programa de compra de títulos de dívida pública e dívida privada no mercado secundário, lançou novas linhas de refinanciamento de longo prazo para a banca à taxa de -0,5% e recalibrou o instrumento de refinanciamento de longo prazo especificamente dirigido à oferta de crédito à economia por parte dos bancos, com condições que lhes permitirão emprestar maior volume e a uma taxa de juro inferior.
Todas estas medidas partilham várias convicções e é na plausibilidade delas que assentam as suas fragilidade e insuficiência para preservar as obrigações contratuais na economia. A primeira é a de que os agentes económicos, sejam seles empresas, famílias ou o sector social, conseguirão pagar nos quatro próximos anos as dívidas que irão contrair, ainda que em condições de preço mais favoráveis. A segunda é que os agentes económicos conseguirão pagar sem recessão os impostos futuros (e aguentar a degradação de serviços públicos) durante os muitos anos necessários para amortizar a montanha de nova dívida pública que se anuncia. Finalmente, para não cansar os leitores, as medidas assumem também que continuará a existir poupança disponível na economia global para financiar soberanos e bancos de todo o mundo à escala sem precedentes que se perspectiva. Ora nenhuma destas premissas me parece garantida e quanto mais tempo passar sem um quadro de referência tranquilizador quanto à eficácia e à sustentabilidade financeira e social das medidas, pior será, i.e., mais capital no sentido lato será destruído e mais penosos serão os períodos de confinamento social e reactivação das economias. A pandemia é isso mesmo, global, e nem as geografias de onde saíram nos últimos dez anos tantos fundos para financiar dívidas públicas e privadas nos países deficitários da última crise, como Portugal, escaparão à enorme procura de financiamento. Por isso, o risco de secagem de financiamento global, de que ainda não se fala, é mesmo para levar a sério.
É cada vez maior o número de empresas com perdas avultadas no volume de negócios. Os desafios actuais confrontam-nas com a seguinte escolha: manter ou romper os compromissos contratuais. Manter significa que têm de usar reservas próprias de liquidez para continuar a honrar os seus compromissos, desde logo para com os trabalhadores, mas também para com todos os outros agentes na cadeia de fornecimento. Se o conseguirem fazer durante os meses de confinamento social, terão preservado o seu capital, nas múltiplas formas, e conseguirão corresponder rapidamente à retoma da procura finda a crise sanitária. Se não tiverem reservas próprias, situação que rapidamente se generalizará, quererão aceitar os estímulos públicos em oferta, incluindo os que passarem pela banca. Porém, esta opção significa também aceitar as condições desses apoios, questão que retomarei já a seguir. Se, ao invés, as empresas decidirem Romper, no todo ou em parte, os compromissos financeiros decorrentes dos contratos em vigor, minimizam, embora não totalmente, as perdas e evitam a acumulação de dívida; com processos de falência facilitados, migrarão mais facilmente para outros projetos e outras paragens no futuro pós-covid-19. O drama social é que a eventual racionalidade da segunda opção, rompimento dos laços contratuais, será a tragédia da comunidade devido a um efeito de dominó.
Qual é então o problema fundamental com as medidas de política orçamental e monetária que estão a ser tomadas? Amortizações, a obrigação de devolver o capital emprestado! De uma maneira ou de outra, os soberanos, os bancos, as empresas, o sector social e as famílias vão ficar com um fardo imenso de dívida às suas costas. A dificuldade significativa não estará no preço, na taxa de juro, pois o ponto de partida é muito favorável e o BCE e as linhas de garantia mútua estão a criar condições para as taxas baixarem ainda mais no mercado. O problema vai mesmo ser a capacidade de os devedores devolverem o capital, mesmo que num número de prestações superior ao que é típico de situações normais. Duas imagens servem para ilustrar a gravidade do problema. À escala de um restaurante ou barbeiro, as refeições e os cortes de cabelo que não se venderem de Março a Maio, não irão ser vendidos de Junho em diante. É receita perdida para sempre. À escala do Estado português, pense-se no seguinte. As remunerações pagas a assalariados em Portugal durante 2018 fora das Administrações Públicas ascenderam a cerca de 69 mil milhões de euros, qualquer coisa como 78% de toda a despesa pública nesse ano (contabilidade nacional). E não estamos a incluir a remuneração de outros factores de produção. Se, por absurdo (esperemos que seja mesmo), o Estado quisesse assegurar com subsídios este valor às empresas, durante um ano, tal medida faria a dívida pública crescer automaticamente cerca de 28%, sem contar com o que seria necessário para compensar a perda de impostos (e sem descontar a queda de despesa que poderá haver noutras rubricas em tempo de covid-19). Como sempre, e por muita que seja a solidariedade entre pessoas e entre Estados-membros, os que tiverem arrancado para esta crise com uma situação financeira mais sólida enfrentarão com menos sacrifícios as obrigações de amortização. Após a crise sanitária, o mercado voltará a ser implacável na diferenciação das percepções de risco. Já sabemos da história quem ficará pior nessa altura.
Então, se o problema fundamental está nas amortizações das dívidas, por que é que os poderes públicos não agem sobre ele? Por que é preciso pensar “fora da caixa” e ponderar ousadia com prudência. O que eu proponho é a adopção, por parte dos bancos centrais, a começar pelo BCE, de uma medida não-ortodoxa de política monetária: injectar moeda na economia sob a forma de empréstimos não-reembolsáveis. Como? Criando moeda primária através do pagamento aos bancos dos reembolsos dos empréstimos condicionados que estes venham a fazer às empresas para elas manterem incólumes os compromissos financeiros perante os seus fornecedores, trabalhadores à cabeça. Os bancos concederiam crédito às empresas suas clientes na condição de só poder ser utilizado para liquidar tais compromissos e assim evitar que esse dinheiro acabasse em aforro das empresas ou noutros fins. Na hora do reembolso, seria o BCE, e não os clientes, a amortizar o capital aos bancos, depositando o dinheiro necessário na conta dos mesmos junto do Sistema Europeu de Bancos Centrais, à medida que as amortizações se fossem vencendo. Os clientes pagariam apenas uma taxa de juro reduzida para remunerar o serviço de intermediação bancária e os incentivar a uma utilização responsável desta medida. A mesma teria uma duração temporária, até que a reactivação do aparelho produtivo começasse a gerar os fluxos de caixa necessários para pagar os compromissos contratuais à cadeia de fornecedores. Portanto, em última análise, o que eu proponho são transferências temporárias do BCE para as pessoas, através do sistema bancário, condicionadas ao pagamento dos compromissos contratuais. A criação de moeda (passivo do BCE) teria como contrapartida a redução de resultados (capital do BCE). Esta solução tem a vantagem de a perda de resultados ocorrer na única instituição cuja sobrevivência não é ameaçada por perda de capital financeiro, pois, graças ao monopólio legal na criação de moeda com curso legal obrigatório, a sua actividade poderia prosseguir.
Esta medida teria a enorme virtude de inclinar a decisão das empresas a favor da opção Manter vivas as relações contratuais. Com efeito, faria desaparecer aquele que é o maior óbice dos incentivos em curso: fardo das amortizações. Quanto mais cedo for anunciada, mais empresas optarão neste sentido e menos fragmentação acontecerá no tecido produtivo. Os pormenores poderão ficar para depois, mas o anúncio por parte do BCE e o apoio por parte do Ecofin nos próximos dias serão decisivos. Seria gerada inflação? Sim, mas com desenho adequado e monitorização rigorosa, os custos sociais do imposto-inflação poderão ser uma alternativa muito promissora ao que se avizinha sem esta medida. Haveria depreciação do euro? Talvez, dependendo da resposta das outras uniões monetárias. Contudo, inflação e depreciação cambial não seriam uma consequência específica da medida aqui proposta. As medidas convencionais e de quantitative easing que os bancos centrais já estão a tomar também injectam moeda e têm o mesmo potencial para criar inflação e depreciação.