Distanciamento social

O passado, por si só, não chega. E o futuro é particularmente incerto. Como responder a esta combinação de profunda incerteza e de distanciamento social forçado por um prazo indeterminado?

A covid-19 trouxe consigo um novo imperativo: a regra do “distanciamento social”. Tal como o vírus, o distanciamento social chegou sem aviso, mudou as nossas vidas e não se sabe quando terminará.

Esta ideia de distância social não é nova. Em ciências sociais, significa uma de duas coisas. Do ponto de vista da sociedade, distância social indica o espaço entre as posições ocupadas pelos agentes na estrutura social. Por exemplo, quando tentamos medir a desigualdade socioeconómica em Portugal, o que se pretende medir é a distância que separa os mais ricos dos mais pobres.

Mas há um outro significado, não menos importante, de distância social. Trata-se da distância física entre os nossos corpos. Uma tradição em ciências sociais tem aqui o seu ponto de partida. A unidade mínima de análise não é o indivíduo racional, mas a interação entre duas pessoas. A sociedade tem origem nesta interação, uma interação que é tanto física como simbólica (linguagem). Deste ponto de vista, o que nos distingue enquanto seres humanos é a capacidade de interagir com outros seres humanos, com o meio-ambiente e connosco próprios de forma quer material, quer simbólica: no primeiro caso, por exemplo, envolvendo a manipulação de coisas; no segundo, por exemplo, permitindo-nos refletir sobre o sentido da vida. É desta interação – simbólica e material – que se define a nossa identidade, bem como a identidade coletiva das nossas sociedades.

É por isto que a prática de distância social que nos está a ser imposta para evitar a propagação da covid-19 – o agora omnipresente “distanciamento social” – é tão custoso e difícil de aceitar. É que, ao sermos obrigados a estar separados dois metros uns dos outros, estamos a ser privados duma parte fundamental do que somos.

Esta dimensão crucial do que somos – chamemos-lhe “socialidade” – varia de sociedade para sociedade, e não tem parado de mudar ao longo da história. Com a globalização, a socialidade tornou-se mais rápida e intensa. É agora mediada digitalmente. Nós próprios nunca viajámos tanto: o turismo é uma das indústrias que mais cresceu nas últimas décadas. É cada vez mais comum termos várias profissões ao longo da vida. Bens antes vistos como duráveis, como o automóvel, são cada vez mais vistos como descartáveis. Ver televisão é um exercício constante de zapping. Esta frenética circulação global de informação, de seres humanos e de bens materiais marcou o nosso tempo até à chegada deste novo vírus.

Com a covid-19, o ritmo frenético do nosso tempo desacelerou. Mas, talvez mais importante, ninguém sabe por quanto tempo. A verdade é esta: ninguém sabe o que vai acontecer – quanto tempo vamos ter de esperar até à chegada de uma vacina, aos efeitos na economia e na sociedade em geral.

O facto de não sabermos o que se vai passar causa ansiedade. Isto deve-se à forma como os seres humanos fazem escolhas e tomam decisões. As nossas decisões são feitas com base em informação. A maior parte desta informação vem do passado. A memória individual e coletiva é um repositório infindável de experiências e lições. Uma outra parte da informação, significativamente menor, é relativa ao futuro. Sonhar, imaginar e prever é parte integral do processo de tomada de decisão.

É isto que a covid-19 veio interromper. A informação disponível, passada e futura, é insuficiente para sabermos o que fazer perante esta pandemia.

Quanto ao passado, o que sabemos sobre a praga de Justiniano, a peste negra ou a gripe espanhola de 1918 diz-nos muito pouco sobre o que vai suceder. Já a epidemia da SARS de 2002, que acontece em plena era da globalização, dá-nos mais pistas sobre o que aí vem. A forma como os habitantes de Hong Kong alteraram os seus hábitos de forma permanente em consequência dessa epidemia, em particular, faz alguma luz sobre o que poderemos esperar que aconteça. Mas a verdade é que esta é a primeira pandemia de um mundo globalizado. É certo que a experiência de países que se defrontaram com a covid-19 semanas antes do que nós, como a China ou a Itália, permitiu a construção de modelos matemáticos sobre evolução da propagação do vírus entre nós, como aquele feito por Jorge Buescu para o Observador. Mas a matemática diz-nos pouco sobre o futuro da economia e quase nada sobre o futuro da sociedade como um todo.

Portanto, o passado, por si só, não chega. E o futuro é particularmente incerto. Como responder a esta combinação de profunda incerteza e de distanciamento social forçado por um prazo indeterminado?

Ao nível de cada um de nós, uma hipótese é a de aproveitarmos este período para robustecer a nossa vida interior. Reavaliar as nossas escolhas habituais, fazer um balanço do que se passou e nos trouxe até aqui, e imaginar novas opções de vida é, por estes dias, não apenas uma imposição, mas pode bem tornar-se uma oportunidade para nos reinventarmos.

Do ponto de vista das relações com familiares, amigos e colegas, o desafio é como mantê-las apesar da imposição de distanciamento social. A prazo, como aconteceu em Hong Kong, é provável que alteremos os nossos hábitos de interação social. Por exemplo, é possível que comecemos a usar máscaras sempre que estivermos constipados ou engripados. Por ora, resta-nos usar o mesmo mundo globalizado, que permitiu a este novo vírus propagar-se tão rapidamente, no combate a esta pandemia. Em particular, a distância social pode ser mitigada pelas redes sociais, pela economia digital e pela circulação imediata de informação credível.

Este último ponto traz-nos ao plano das instituições. Cabe a estas – governos nacionais, Organização Mundial da Saúde, etc. – garantir que a imposição de distância social é respeitada e, assim, a propagação do vírus limitada. Mas também é possível que a distância entre ricos e pobres, já muito significativa entre nós antes desta pandemia, aumente exponencialmente nos próximos anos. Ambos são desafios tremendos, sobretudo numa situação de grande incerteza como a atual. Mas são uma oportunidade para, fazendo uso da investigação e do conhecimento científico, desmascarar os demagogos do nosso tempo.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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