Uma nova ordem mundial: educação, ideias e sociedade, alguns aspectos
Acredito que a escola será das primeiras instituições a dar coordenadas novas no pós-coronavírus. Em nome de um ideal de sociedade mais fraterna, as políticas de ensino ancoradas na subserviência, no medo, no resultadismo mais nefando têm de ter um fim.
Reféns da economia computacional, maná do sistema global, assente nas redes sociais e na alienação da internet, diz-nos Bruno Patino num livro urgente (A Civilização do Peixe Vermelho, Gradiva, 2019) que é esse um dos sintomas mais evidentes da doença que – agora com foros apocalípticos – nos afecta. “A economia da atenção vai paulatinamente destruindo todas as nossas referências. [...] A perturbação da informação, as ‘notícias falsas’, a histerização do discurso público e a suspeição generalizada [espelham] o colapso da informação [...], a consequência primordial do regime económico escolhido pelos gigantes da Internet. O mercado da atenção forja a sociedade de todas as fadigas, informativas, democráticas. Faz com que se apaguem as luzes filosóficas em benefício dos sinais digitais.” (p.15).
Julgo que é esta última imagem – a do apagar das Luzes em benefício dos sinais digitais – um dos pontos-chave neste tempo de clausura. De facto, este novo vírus, conhecido na China desde os meses de Outubro, Novembro e que se alastrou a todo o globo, é uma terrível metáfora para este período em que vivemos. Metáfora e símbolo: a covid-19 é bem a peste de que a sociedade global estava necessitada ("Quem semeia ventos...”). Como na tragédia grega, Édipo cometeu um crime de consequências temíveis. Temos estado cegos para o Outro, cegos para a fauna e flora da nossa casa-comum. Na miséria estaremos todos unidos?
Lucidez e coragem exigem-se, mais do que nunca. Explorou-se até ao limite o que a Terra tem para dar e nas relações humanas, sobretudo ao nível do sistema educativo mundial, cai pela base a concepção de um ensino centrado na formação para o mercado de trabalho. Ao encerramento das escolas e universidades seria bom que se seguisse a sua reabertura, mas agora com currículos mais verdadeiramente pedagógicos: Música e Literatura, Artes e Direito, História das Mentalidades e Filosofia, e não a formatação de gerações inteiras, todas elas formadas no rolo compressor de uma mentalidade gestora e de economistas que têm como única meta a exploração absoluta de tudo e de todos.
“A civilização moderna baseia-se na violência, está sempre a cortejar a morte. Enquanto adorarmos a força, a violência será o nosso modo de vida. Mas se aceitarmos a paz, se queremos realmente um relacionamento correcto entre todos [...], se queremos que os nossos filhos sejam seres humanos integrados, então a aprendizagem militar será um verdadeiro obstáculo, um meio errado”, diz-nos J. Krisnamurti em A Educação e o Sentido da Vida (ed. 70, 2016, p. 61-62). A educação dos últimos 70 a 100 anos nada mais foi que uma educação militarista. A covid-19 pode ser uma oportunidade para mudar. Mas, se insistirmos no mesmo paradigma, falharemos. Mais do que nos fazer reféns do teletrabalho, este tempo deve fazer-nos repensar a forma como todos nos estamos a relacionar desde que a Internet se tornou viral (as palavras não são vazias de sentido). No amor, nas relações profissionais, não estará doente a humanidade?
Se, com o passar dos meses, o estado de alarme global se mantiver não haverá hipótese alguma de confinar milhões de seres humanos nos seus “teletrabalhos”. O homem tem em si uma sede de liberdade que está a vir ao de cima. Se é certo que, nesta fase, se impõe o dever de recolhimento doméstico, não sei se poderemos aceitar a domesticação pelo teletrabalho. E julgo que em todos os sectores da vida social, na nossa sede pelo lucro, na avidez com que os grandes empórios ditaram as leis do mercado; na perdição mágica das grandes jogadas de bastidores da finança mundial, este vírus é a moeda de troca de que nenhum dos grandes decisores estava à espera: do BCE ao FMI, do complexo industrial-militar americano ao PC chinês. Que se aprenda esta lição da História...
É este, pois, um vírus que sintetiza todos os vícios; que obrigará a que a sociedade nova que daqui surgir tenha como base da política internacional o equilíbrio com a natureza. De Carl Sagan ao mais recente livro de David Wallace-Wells, quantos avisaram a classe política mundial, cega e irresponsável? Reflexo de uma consciência humanista, queremos que se redistribuam as riquezas em partes iguais por todos. Não é possível continuarmos cegos para as desigualdades gritantes: no mundo Ocidental, as periferias dos grandes centros urbanos, os salários astronómicos de gestores e ordenados de miséria de quem faz as indústrias e empresas terem lucros. Em África, a mais carnal e palpável das pobrezas, abandonados à sorte de ditadores, testas-de-ferro das potências ocidentais; na América do Sul, o fosso cada vez maior entre os que nada têm e os que têm tudo, até ilhas! Esta ordem mundial tem que dar lugar a uma classe política ciente do património humano. Não é admissível, em face dum vírus que não escolhe raças, cores, fortunas e classes, defender – como muitos quererão fazer – que as democracias foram as causadoras deste alastrar da pandemia. A única pandemia pela qual, todos, de regimes mais totalitários a regimes neoliberais, somos responsáveis foi, e é, a pandemia da cobiça e do lucro.
O espelho mais cristalino dessa pandemia é o campo da educação dos mais novos, hoje autêntico rebanho de gente com uma mesma concepção de mundo. Mergulhados nos seus ecrãs, fechados para o mundo das ideias. Crê-se que, à custa desta quarentena de meses, a saída será o admirável mundo novo das tecnologias. Mas não se compreende que o tempo da globalização veloz acabou? Que o humano está a exigir um ritmo mais consentâneo com a sua humanidade, frágil e mortal? Acredito que a escola será das primeiras instituições a dar coordenadas novas no pós-coronavírus. Novas formas de avaliação sem a sangria desatada dos exames. Regresso ao livro e à leitura ponderada, ao espírito, enfim. É que a simples ideia de colocar milhares de alunos e professores numa espécie de ensino em rede, transformando o professor em mero tutor ou administrador de conteúdos, isso fere de morte aquele espírito das Luzes que, mais do que nunca, deveremos resgatar do olvido.
Ao coronavírus não queiramos acrescentar novas estirpes do vírus da alienação de que os sistemas educativos mundiais, visando o mercado de trabalho, criaram. Amestrar as nossas crianças e jovens – sem memória, sem linguagem, sem armas para combater com o pensamento livre esta fase nova da História – a pretexto do novo maná que seria um sistema de educação em rede, traduzir-se-ia (traduzir-se-á?) no apagamento definitivo de velha Europa. Em nome de um ideal de sociedade mais fraterna, as políticas de ensino ancoradas na subserviência, no medo, no resultadismo mais nefando têm de ter um fim.
Que Europa e que Ocidente deveremos, queremos ser? Um Ocidente e uma Europa dominados por um novo empresariado vindo do Plano Marshall chinês ou outro? Não: queremos ser Europa da cultura letrada, da solidariedade, da democracia, fruto das Luzes. Substituir pelos sinais digitais os livros, as aulas por sessões em rede a isso nos obriga a covid-19: a mudar as mentalidades – não só a uma alteração de políticas.