Sobre os ombros de vilões
Muitos colegas, por iniciativa sua e com o seu dinheiro, estão a comprar placas de acrílico para fazer de barreira física, a comprar fatos de pintor e óculos de mergulho, a encomendar máscaras de todo e qualquer fornecedor e a trazer o álcool de casa. Em medicina de emergência existe uma máxima intocável: se não há condições de segurança, não se pode progredir.
A narrativa dos profissionais de saúde heróis provoca-me intensa revolta. É uma história demasiadas vezes contada, feita de palmadinhas nas costas e de umas quantas palavras de incentivo propagandísticas. Lá vai o soldado raso para a frente de batalha, equipado com um clipe de papel. E que tenha cuidado, não o dobre, que vai precisar dele outra vez. Na sexta-feira à noite, ao regressar de uma noite de urgência, fui partilhando experiências com colegas de outros hospitais. Os relatos sobrepunham-se, as histórias repetiam-se e a conclusão a que chegámos foi de que nada há de heróico nisto.
Há, sim, uma dupla vilania que está à vista de todos os que colocam um pé dentro dos serviços de saúde estes dias: se não nos protegemos, não protegemos o doente, não teremos capacidade proteger o sistema de colapsar. Um médico doente em casa é um médico inútil, um médico doente no hospital é um vilão, curando menos do que aqueles que potencialmente infecta. O mesmo se aplica a enfermeiros, técnicos e assistentes operacionais. O equipamento de protecção individual é, na verdade, um equipamento de protecção da comunidade. E é por isso que tem de ser a primeira preocupação de todo e qualquer serviço neste momento.
Os números chineses e o desastre italiano não deixam dúvidas de que um elevado número de profissionais de saúde contrai a doença e a transmite. É uma lição muito clara e quando vemos o nível de protecção utilizada actualmente em Wuhan e em toda a Coreia do Sul, sentimo-nos como se estivéssemos parados no tempo.
Pelo caminho, apelamos às chefias que pressionem quadros intermédios, para que estes façam requerimentos a direcções e administrações, num interminável imbróglio burocrático e de gestão hábil de fundos. Se há uns mais afortunados que estão bem chefiados, outros vivem hoje situações preocupantes, graves, revoltantes.
Algumas Unidades de Saúde Familiar receberam esta semana óculos de sol de plástico e folhas de acetato para fazerem as suas próprias protecções de trazer por casa. Há que expor estas histórias para que se entenda o nível de distanciamento entre quem decide e quem está na linha da frente. Um insulto pode chegar de muitas formas, mas há níveis que desafiam a imaginação.
Muitos colegas, por iniciativa sua e com o seu dinheiro, estão a comprar placas de acrílico para fazer de barreira física, a comprar fatos de pintor e óculos de mergulho, a encomendar máscaras de todo e qualquer fornecedor e a trazer o álcool de casa. Outros, nos hospitais, em plenas áreas dedicadas a doentes positivos para covid-19, encontram-se a meio dos turnos sem solução desinfectante, sem máscaras e a reutilizar batas descartáveis. Não se podem proteger, não podem proteger o próximo doente que vão reavaliar. Em medicina de emergência existe uma máxima intocável: se não há condições de segurança, não se pode progredir. É a diferença entre uma vítima e várias. É a diferença entre comprar dezenas de ventiladores e não ter dezenas de pessoas para os operar.
Um cenário de guerra improvável expôs todas as fragilidades de um sistema já habitualmente no limite, gerido nos mínimos indispensáveis, contando com a colaboração e empenho dos seus profissionais para maquilhar o problema enquanto os recursos se esgotavam noutros destinos. É certo que vivemos tempos de total excepção e que há um ano nada disto seria previsível. Mas não ter tempo de fazer stock é bem diferente de não agir. A primeira prioridade para qualquer gabinete de crise que se constitua terá de ser sempre, sempre, a protecção dos seus bens mais valiosos. E se individualmente as soluções de recurso vão surgindo, e às suas custas os profissionais se protegem, também o estado que os coloca na linha de frente deveria ser capaz de se reinventar. Também os açambarcadores de máscaras que agora não sabem o que fazer com elas têm culpa nisto, depauperando um mercado aproveitador.
Desde há semanas que este cenário se desenhava. Se em vez de investir em comunicação se tivesse investido em soluções, hoje seríamos um exemplo. Bloquear a venda livre de material médico teria sido essencial. Depois, num país de indústria têxtil, tratamento de plástico, moldes e componentes... redireccionar essa indústria para equipamento médico teria sido uma estratégia brilhante. Teria sido uma resposta de verdadeira liderança através do exemplo, provando-nos que quem nos chefia consegue ver mais além do que nós. Ao invés disso, o que vimos foi um afastamento gradual dos profissionais de saúde, que quando aparecem doentes, para a Direcção-Geral de Saúde podem perfeitamente “ter contraído a doença na sua vida privada”.
Não, a vida privada não é o principal foco de contágio. A vida profissional sim. Dentro dos hospitais, misturam-se doentes e não doentes, escasseiam testes necessários para tomar decisões e cada um se desdobra em impossíveis contorcionismos para propagar o mínimo de doença com o mínimo equipamento possível. Não devia ser necessário tanto esforço.
Fomos avisados do que aí vinha com meses de avanço, mas o aviso foi menosprezado. Perdemos a oportunidade de estar sobre os ombros de gigantes, de ter planeado melhor, de ter visto mais além. Vemo-nos na verdade sobre os ombros de vilões, a tentar resolver problemas em cima de erros que não criámos. Há que abandonar esse caminho. Nem vilões inevitáveis, nem heróis improváveis.
Temos de seguir por um caminho onde a qualidade de cuidados tem de ser o foco de todos os envolvidos. Ainda vamos a tempo de ver o Governo a redobrar esforços de aprovisionamento, de autarquias mobilizarem a indústria, da população se elevar e doar aquilo que não vai usar. Vêm aí longas semanas de trabalho e de abnegação e única forma de o fazer bem é ter as ferramentas para isso. Ainda vamos a tempo de ser exemplares. Ainda vamos a tempo de escrever a nossa história.