Agora, respira
Nunca estiveste na iminência de estar tanto tempo tão longe de tanta gente e nunca soubeste tanto da vida de todos.
Respira.
O teu mundo mudou sem aviso prévio. Não foi só o teu. Mudou o teu, o dos que te são mais próximos, o daqueles que estão longe. Tudo mudou e tu não tens tempo para te adaptar, para absorver. Foste para casa porque te inseres num dos grupos de risco, porque a escola dos teus filhos fechou, porque entraste em teletrabalho, tenha a tua empresa mantido quotas ou não. Afinal, o mundo só mudou; não parou.
Respira.
Estás dentro de quatro paredes, mas em vez de te deitares no sofá a molengar para ver aquele filme parvo que te permite apagar o cérebro, és invadido com milhares de ideias de coisas para fazer. Tudo para que te entretenhas, para que não percas o ritmo, para que não te esqueças da rotina. Ainda que o pensamento que te põe a questionar se daqui a uns tempos haverá possibilidade de retomar a rotina te assalte. Será que ainda terás emprego? Será que o ATL dos miúdos se conseguirá manter? Será que o café a que costumas ir volta a abrir? Será que?... Entras no modo ruminante, como explicava há dias, numa entrevista ao PÚBLICO, a psicóloga clínica Maria Palha.
Respira.
O mundo como que a dar provas que não parou, o teu trabalho não abranda. “Bolas! Até parece que trabalho mais em casa.” Em simultâneo, os professores dos teus filhos começam a enviar trabalhos, lições, fichas. Tudo com prazo de entrega. E vês-te no triplo papel de progenitor, profissional da tua área e professor/pedagogo. Depois, ao fim do dia, lês uns memes nas redes sociais de um ou de outro professor que dizem que agora é que os pais vão saber como lhes mordem. Escreves furioso um texto que mostras a um amigo.
Respira, diz agora ele.
Nunca estiveste na iminência de estar tanto tempo tão longe de tanta gente e nunca soubeste tanto da vida de todos. Lês relatos trágico-cómicos que te arrancam gargalhadas, lês as decisões dramáticas de pais e mães que, com guarda partilhada, têm de decidir onde os filhos ficarão mais seguros, ficas a saber que uma amiga tem uma empresa e que mandou as pessoas da sua segunda família para casa, preocupada com a segurança da saúde deles e que agora, com o menino nos braços, chora por não saber se voltarão todos, se voltará algum.
Respira.
Lembra-te das palavras da Maria:
“Esta é uma situação específica e um momento específico. As coisas não vão ficar assim para sempre e não são assim.”
“Ninguém está muito bem preparado para uma situação de crise.”
“Temos de baixar um bocadinho a exigência connosco, com os nossos filhos e com toda a gente que nos rodeia.”
Respira e torna a respirar.
Ao fim de 96 horas de total e absoluta clausura sais à rua por necessidade. Vês os estabelecimentos abertos, pessoas juntinhas no banco do jardim, idosos a passearem o carrinho das compras como se este fosse apenas um dia depois de ontem.
Respira.
Afinal, não são só coisas más. Finalmente vais conseguir jantar com os amigos — por videoconferência é certo. Mas, por fim, já não há desculpas para não se sentarem, cada um à sua mesa, e acabarem a chorar de tanto rir. Ou será o contrário?
Depois, quando tudo parece sufocar-te, percebes a sorte que tens. Pela família, pelos inacreditáveis amigos, pelos camaradas de trabalho. E também, simplesmente, por a vida de ter posto no caminho de pessoas de quem tanto gostas e que gostam tanto de ti.
Recebo a primeira parte de um filme, ainda em desenvolvimento, como um mimo. E, então, o mundo pára. Durante cerca de 40 minutos, sou tomada por uma imensidão de sentimentos e emoções. A começar pela gratidão ao Miguel Gonçalves Mendes, e por um dia, há uns 15 anos, nos termos cruzado, curiosamente para falarmos sobre Macau para um artigo para o Fugas.
O filme chama-se O Sentido da Vida e subitamente a vida nunca fez tanto sentido.
Por fim, consigo respirar.