Eutanásia – Autonomia e Liberdade
Carecem de razão as posições que contestam a legitimidade do Parlamento para legislar sobre este assunto.
Tal como era fácil de prever o tema da eutanásia está de regresso ao debate político nacional. Não há qualquer motivo para nos espantarmos com isso e são desprovidas de fundamento as críticas que pretendem alegar um suposto carácter intempestivo deste agendamento. Não há ocasiões mais ou menos propícias para levar a cabo uma discussão que será sempre travada de uma forma polarizada, dada a complexidade e o melindre do tema e a natureza das paixões que facilmente pode convocar. Ninguém poderá verdadeiramente afirmar, de resto, que não esperava que os defensores da despenalização da morte medicamente assistida voltassem a apresentar iniciativas parlamentares visando a sua aprovação. Carecem igualmente de razão as posições que contestam a legitimidade do Parlamento para legislar sobre este assunto. Uma coisa é advogar as vantagens do recurso ao referendo, outra é procurar vilipendiar a sede da representação nacional com recurso a uma linguagem de índole populista que não enobrece quem a utiliza. Ocorre, ademais, que sobre este súbito fervor referendário recai a legítima suspeita de não constituir mais do que um simples expediente visando a correcção de uma decisão parlamentar que se adivinha ir num determinado sentido. Não colhem por isso as objecções que têm vindo a ser apresentadas à promoção deste debate.
Afastemo-nos, assim, da apreciação das circunstâncias que envolvem esta discussão parlamentar e concentremo-nos na substância da mesma. Dada a importância da questão em causa, e mau grado ela remeter imediatamente para o domínio do direito penal, impõe-se uma abordagem que, entre outros planos, convoque uma reflexão antropológica e filosófica. Na verdade, estão em causa princípios e valores que, no limite, nos reconduzem a um debate entre as diversas compreensões do humano. Não há nenhuma vantagem em elidir essa confrontação de pontos de vista, desde que partamos do pressuposto de que a complexidade do assunto desautoriza inflamadas proclamações dogmáticas.
Procurarei, assim, dar o meu contributo para esta discussão expondo as razões de fundo que me levam a apoiar as iniciativas legislativas em debate no Parlamento. São basicamente três: a afirmação do princípio da autonomia humana; a consagração da primazia da independência individual; a importância do acolhimento na ordem jurídica do pluralismo das orientações morais que é constitutivo das sociedades democráticas modernas.
A Modernidade iluminista europeia, de que os nossos sistemas políticos demo-liberais são subsidiários, alicerça-se na noção de autonomia do Homem que surgiu historicamente por contraposição às teorias que privilegiavam o princípio de uma hetero-determinação, fosse esta de natureza mítica, religiosa ou meramente tradicional. A ruptura moderna consiste precisamente no reconhecimento de uma razão e de uma vontade humanas que se podem representar como uma autoconsciência e uma capacidade de autodeterminação. Essa é, sem dúvida, uma das grandes metamorfoses observadas na História da Humanidade.
O pensamento democrático e liberal contemporâneo consagrou o princípio do primado da independência individual face ao risco de uma tirania comunitária manifestada sob o modo de uma intrusiva presença na esfera das decisões privadas de cada pessoa. Não há, como é evidente, subjectividades puras ou indivíduos atomizados, mas há a possibilidade de salvaguardar um vasto campo de independência individual que constitui, aliás, condição necessária para a plena construção de um sujeito moral.
Atendendo ao atrás referido chegamos facilmente à conclusão de que uma das características das sociedades contemporâneas consiste no reconhecimento e na valorização do pluralismo ideológico, axiológico, estético e religioso. Compete ao direito regular, em grande parte, a convivência entre a diversidade de opiniões, de convicções e de crenças que coabitam no interior de um mesmo espaço sociopolítico.
Aqueles que agora pretendem alterar a legislação de modo a permitir a prática da eutanásia voluntária inscrevem-se nesta linhagem de origem iluminista que se fundamenta nos três princípios enunciados: autonomia do Homem; independência do indivíduo; reconhecimento do pluralismo das opções morais. No fundo, o que está em causa é o valor superior da liberdade. A vida humana tem uma dignidade ontológica indiscutível, permanente e alheia às circunstâncias em que se desenvolve. Não há vidas mais ou menos dignas nesse plano objectivo.
Só que a vida humana não pode ser entendida como uma entidade puramente abstracta ignorando que ela se realiza em pessoas concretas e que estas têm a capacidade de conscientemente se autodeterminarem em função das suas próprias referências morais e éticas. Aqui reside a grandeza do Homem. É por isso que o Homem em determinadas circunstâncias se dispõe a abdicar da sua própria vida em nome de causas e de valores que superam a preocupação com a preservação daquela. Só um ser livre, capaz de superar ou de se subtrair aos seus impulsos vitais, pode agir desta forma. Em nome de uma certa concepção da vida o Homem ousa pôr em risco a sua vida. Fá-lo por uma questão de dignidade subjectiva fundada num sistema moral que livremente concebeu ou acolheu. Há que admitir que possa usar dessa mesma liberdade perante o acto final da sua vida que a morte constitui. Falando da eutanásia é ainda - e sobretudo - da vida que estamos a falar.
Como lembrava há dias Alexandre Quintanilha num belíssimo artigo: “A forma como cada um quer morrer é provavelmente a decisão mais importante da sua vida. “Tem inteira razão. Ouvimos ainda ecoar um dos mais célebres versos de Petrarca: “Un bel morir tutta una vida onora”.