Ana Gomes pode resolver problemas a António Costa
Basta a Ana Gomes um honroso resultado entre os 15% e os 20% para estragar a festa a Marcelo Rebelo de Sousa e cumprir uma missão política que favorece o PS.
A antiga dirigente do PS e ex-eurodeputada Ana Gomes tem insistido na recusa de ser candidata nas eleições para Presidente da República previstas para Janeiro. Explicou que não quer e até justificou com o argumento de que o estatuto de candidata presidencial lhe iria “coarctar a liberdade que é essencial” para a sua “capacidade de intervenção cívica”. Intervenção cívica e política que lhe deu um raro currículo de luta em defesa da liberdade e dos direitos humanos e de denúncia e combate contra a corrupção pleno de “medalhas”: Timor, voos da CIA, submarinos, Angola, Iraque, imigrantes, refugiados, presos políticos.
Não é possível hoje saber se Ana Gomes vai manter a recusa em candidatar-se ou se acabará por ter de mudar de ideias e avançar para as urnas, devido a um movimento de apoio à sua candidatura que possa entretanto formar-se. Até agora, no universo do PS, só Francisco Assis e Henrique Neto defenderam claramente que o faça, e fora do partido, Rui Tavares, do Livre. Mas é de admitir que os apoios se densifiquem.
Uma coisa parece evidente, a candidatura de Ana Gomes resolveria diversos problemas a António Costa e ao PS quer nas presidenciais quer na futura relação com o actual Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, durante o exercício de um seu segundo mandato. Discordo, assim, de Ana Gomes, quando afirmou em entrevista à RTP3: “O primeiro-ministro, António Costa, jamais permitirá.”
É evidente que Ana Gomes nunca poderá surgir como a candidata apoiada oficialmente pelo PS. Nem ela nem nenhum outro militante socialista ou personalidade dessa área política. Primeiro, pela necessidade de António Costa ser coerente em relação às presidenciais de 2016, em que não apoiou nenhum candidato, assumiu a liberdade de voto e os dirigentes e militantes dividiram-se entre Maria de Belém Roseira, Sampaio da Nóvoa e Marcelo Rebelo de Sousa. Sendo que agora os dirigentes de topo do PS poderão vir a integrar as comissões de honra de duas candidaturas. Uns, a de Marcelo Rebelo de Sousa. Outros, a de Ana Gomes ou de outra personalidade de esquerda democrática que venha a candidatar-se.
Em causa está também a necessidade de António Costa e do PS não hostilizarem directamente Marcelo Rebelo de Sousa, com quem terão de conviver institucionalmente, pelo menos até ao fim desta legislatura. É dos livros que, num segundo mandato, o Presidente da República adquire sempre um perfil mais interventivo e fiscalizador do Governo. E a última coisa de que António Costa e o seu Governo de maioria relativa — embora confortável nos seus 108 deputados, num Parlamento fragmentado — precisam é de afrontar directamente a recandidatura do actual Presidente da República, abrindo a porta a uma relação tensa no futuro. É por isso que considero ser impossível uma candidatura, por exemplo, de Carlos César, que é presidente do PS. Tal surgiria como uma provocação directa a Marcelo Rebelo de Sousa por parte do partido liderado pelo primeiro-ministro, António Costa.
Este é o aspecto mais importante em que a candidatura de Ana Gomes resolveria um problema a António Costa: o peso e a legitimidade eleitoral com que o actual Presidente da República pode vir a ser reeleito. É sabido que, quanto maior for a percentagem de votos obtida por Marcelo Rebelo de Sousa, mais força ele terá para exercer o segundo mandato e afrontar o Governo. E não é segredo para ninguém que a maior consagração do actual Presidente da República seria aumentar os 52%, que teve em 2016, e atingir uma percentagem superior aos 70,35% dos votos conquistados por Mário Soares, na sua reeleição em 1991, quando Cavaco Silva, líder do PSD e então primeiro-ministro, se limitou a não apoiar ninguém e a deixar subentendido o apoio a Mário Soares.
Ora, com uma candidata claramente oriunda do PS, como Ana Gomes, ainda que apoiada por um movimento de cidadãos, haveria espaço para o debate das ideias socialistas e para estas marcarem a campanha. Tal como seria nítida a possibilidade de Ana Gomes atrair eleitores que terão tendência a votar em Marcelo Rebelo de Sousa se não houver um candidato da área do socialismo democrático. E basta a Ana Gomes um honroso resultado entre os 15% e os 20% para estragar a festa a Marcelo Rebelo de Sousa e cumprir uma missão política que favorece o PS.
Além de que Ana Gomes poderá ir buscar votos ao eleitorado do BE e do PCP. Esvaziando assim também a possibilidade de crescimento de Marisa Matias, que em 2016 teve 10,12%, ou de outro candidato mais à esquerda. Não é por acaso que a hipótese da candidatura de Ana Gomes assusta o BE, e Francisco Louçã até já a classificou como “oportunista de circunstância”, na entrevista ao PÚBLICO e à Rádio Renascença.
Tudo boas razões, do ponto de vista de António Costa, para o primeiro-ministro e líder do PS dormir descansado com a hipótese de Ana Gomes mudar de ideias e, perante um eventual movimento de apoio que se forme, vir mesmo a candidatar-se às presidenciais de Janeiro de 2021.