Deputados aprovam parecer que considera castração química inconstitucional mas será discutida em plenário

Todos os partidos consideram que a proposta do Chega viola a Constituição e os deputados chegaram mesmo a defender que a proposta não fosse discutida no plenário - à mesma hora que André Ventura a agendava para dia 28.

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Marques Guedes (PSD) é o presidente da primeira comissão Miguel Manso

Depois de uma discussão longa sobre se se deveria travar já ou deixar ser discutida em plenário a proposta de André Ventura para a castração química a pedófilos, os deputados da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias aprovaram por unanimidade o texto do parecer sobre o diploma do deputado do Chega em que se considera que a proposta tem preceitos inconstitucionais. É com base nestes pareceres que a conferência de líderes decide se leva ou não à discussão no plenário as iniciativas legislativas.

No entanto, ao mesmo tempo que na comissão se fazia esta discussão, o deputado do Chega antecipava-se e agendava na conferência de líderes a discussão do seu projecto de lei por arrastamento de uma marcação do PS - precisamente um dos mais críticos do diploma de Ventura - sobre o agravamento das sanções para crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual de menores. Será no dia 28 deste mês. O que significa que a conferência de líderes fez o agendamento sem ter em conta o parecer que avisava para os riscos de inconstitucionalidade. Riscos que até Eduardo Ferro Rodrigues tinha citado quando admitiu a entrada do diploma de André Ventura. 

Na comissão - a cuja reunião André Ventura faltou -, foi discutido o teor do parecer sobre o projecto de lei do Chega. Este parecer costuma ser apenas sobre os aspectos formais dos diplomas e é suposto concluir se o texto está ou não conforme as regras regimentais, legais e constitucionais. Apesar de a conclusão do parecer se eximir de falar na constitucionalidade ou falta dela, todos os partidos presentes na comissão classificaram a proposta de inconstitucional e o texto do parecer inclui a opinião da autora, a deputada Cláudia Santos, que aponta diversas violações à Constituição.

A deputada socialista avisou que aceitar discutir em plenário a castração química nos termos que André Ventura pretende pode fazer com que o Parlamento nunca mais possa recusar qualquer projecto de lei - “a não que se pretenda introduzir a pena de morte por garrote ou por cordel e baraço”, ironizou. Cláudia Santos baseou-se essencialmente no parecer “bastante enfático” do Conselho Superior da Magistratura para apontar as eventuais inconstitucionalidades: a castração química é uma ofensa à integridade física e psicológica e pessoal (violando o direito à integridade pessoal); não prevê limite temporal para o efeito da castração (violando o limite constitucional das penas). Além dessas inconstitucionalidades, o texto de André Ventura acaba por descriminalizar o abuso sexual de menores dependentes entre os 14 e os 18 anos - “um lapso gravíssimo” disse a relatora quando o objectivo do projecto é reforçar a penalização para os crimes de abuso.

Cláudia Santos acusou também o deputado de “desonestidade intelectual” por falar de “números absolutamente inaceitáveis” e “avassaladores” da criminalidade contra menores mas sem citar fontes ou estatísticas, e por apresentar exemplos de outros países onde se usa a castração química como se fossem a mesma solução que propõe, quando há diferenças relevantes (em França a castração pode ser recusada pelo condenado, aqui Ventura quer impô-la) ou até dizendo que já é lei quando ainda está só em discussão (como no Brasil).

Sobre a falta de um limite temporal para a pena de castração, a deputada disse ser um “erro de palmatória que faria chumbar qualquer aluno de direito penal nos primeiros minutos de prova oral” - uma indirecta para André Ventura, que é jurista e que já deu aulas de direito penal.

Ventura não ouviu críticas

Foram muitas (e pesadas) as críticas à forma e também ao conteúdo da proposta de André Ventura vindas de todos os partidos. Mas foi o presidente da comissão, o social-democrata Luís Marques Guedes, quem defendeu que a comissão pode dizer se um projecto de lei é ou não inconstitucional mas não tem “competência para decidir se pode ou não ir a plenário”.

O comunista António Filipe defendeu que a proposta do Chega “manifestamente não está em condições de subir a plenário” e avisou que permiti-lo seria “relativizar gravemente a dignidade da pessoa humana”. E questionou a utilidade dos pareceres e até da comissão de Assuntos Constitucionais se não for para decidir se um diploma deve ou não ser discutido em plenário. “Se os poderes dados a esta comissão são apenas dizer sim, não vale a pena.”

A mesma opinião teve a social-democrata Mónica Quintela. “Se esta proposta vai a plenário, o que não irá depois disto? Resta-nos a pena de morte e outras sugestões quejandas.” A deputada considerou que a proposta de André Ventura tem “erros clamorosos”, “fere direitos constitucionais sagrados pela legislação portuguesa e supranacional e que se pensava que já não era possível nos tempos modernos”, “não resolve nada, é populismo e demagógico”. E lembrou que a castração química não impede um pedófilo de continuar a praticar o crime, porque este crime não se resume aos órgãos sexuais.

Já Telmo Correia, que vincou ser contra a proposta de Ventura, defendeu que o projecto de lei deve ser discutido no plenário alegando com o exemplo da eutanásia e dizendo ter dúvidas sobre a constitucionalidade de ambas. “Ouvi a argumentação de que estes métodos causam sérios danos à saúde. A eutanásia também causa dano à saúde e é irreversível.” O deputado centrista questiona se a comissão deve ser uma “forma de barragem e censura” que até servirá para André Ventura ganhar espaço na opinião pública como vítima.

A bloquista Sandra Cunha atacou a proposta de Ventura por violar os direitos humanos e a Constituição, mas também deixou uma crítica implícita a Ferro Rodrigues ao lembrar que se tinha dúvidas na admissão do diploma, deveria ter consultado antes o Tribunal Constitucional - porque é o presidente do Parlamento que deve decidir se a proposta pode ou não ser discutida.

Joacine Katar Moreira também se mostrou contra permitir que o diploma chegue ao plenário alegando que discutir propostas inconstitucionais pode colocar em causa a “credibilidade” do Parlamento.

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