O avô ligou-lhe, mas ela não atendeu, estava a ler um email; foi a última chamada que lhe fez, não se despediram. A voz não teve espaço para as últimas palavras que ela não chegou a ouvir.
Adiamos o tempo e as pessoas e nem matamos saudades, com a pressa de nos adiarmos a nós próprios. Combinamos encontros avulso com o intuito de nunca os termos; boicotamos a nossa presença sem reparar nisso. Não nos falta tempo, falta-nos um contrato rasgado com a ausência, falta-nos ser para estar. Somos distantes por ser, porque nos apeteceu, porque estava a chover ou o almoço foi mau, o dia também e a vida não presta porque íamos tropeçando no nosso próprio umbigo e é sempre fatal.
Trocamos dois dedos de conversa, mas deixamos histórias por contar, sorrisos por ver e abraços por dar. Perdemos tardes infinitas, serões irrepetíveis e manhãs para sempre; porque temos sempre mais que fazer ou um story para carregar.
Um fim de tarde com outro amigo é uma obrigação, um serão à lareira com os pais também, as mãos no rosto da pessoa que amamos são sempre escassas e nunca nos prestamos para ouvirmos os outros, mesmo que isso seja condição humana. As pessoas não se adiam porque elas não esperam por nós e perdemo-las sem que percebamos que são a outra parte de nós.
Nunca tinha comido donuts com o meu pai, ele era diabético, mas brindámos a isso com cerveja naquela noite que trazia vento quente. Estive para lhe dar um abraço, mas foi só “Amanhã diz qualquer coisa...”. Porque amanhã seria outro dia que nunca chegou a sê-lo. Ele foi-se e não chegou a voltar, adiámos o café que ficara combinado para o outro dia, adiámos os dias para sempre, os almoços pela vida fora e os abraços inesgotáveis, fortes, únicos e nossos. O papel de cada um ficou por ali, com mais duas metades da vida para os cumprir.
A minha avó dizia-me sempre “Até amanhã, se Deus quiser...” por todos os dias, porque estivemos por todos os dias, ainda que à distância de uma chamada ou ao beijo que nunca demos por dar; mas não se chegou a despedir porque o limite da vida nunca deixa um aviso, nem uma carta postal. Ainda hoje lhe escuto as palavras, mas não pude antecipar a última vez. E apesar das últimas vezes custarem sempre, nunca deveríamos deixar que tropecem em nós sem o cuidado de lhes darmos atenção, amor e, pelo menos, três abraços bem dados.
Costumo dizer que as pessoas nunca partem, mas não podemos permitir que se escapem sem amor e palavras no coração.
Passei pela Rita na rua, ela ia no outro passeio mas furei o trânsito para a cumprimentar, foi uma festa. “Combinamos um café para um dia destes e pomos a conversa em dia.” Virámos as costas e seguíamos já com a nossa vida quando voltei para trás, gritei-lhe e não adiámos aquilo que provavelmente nunca iria acontecer. A vida fez a pausa certa. Ambos sabíamos, porque sabemos sempre que um café combinado na rua não é para se dar.
Conheci o Nuno há quatro anos, era fotógrafo como eu, falámos por horas intermináveis e sonhámos exposições em conjunto, assinámos promessas para nos voltarmos a ver e pôr tudo numa parede com tela, para conversarmos. Ontem ele morreu, assim sem mais nem chão. Falei disto à Paula, das incertezas de nos adiarmos por mais tempo que o tempo tem e ela desligou o telefone para me vir dar um abraço. A vida não corre, mas também não espera por ninguém. Desligamos chamadas, fazemos esperar abraços e devolvemos encontros.
A vida é uma epopeia que dura meia dúzia de dias e não nos podemos distrair das pessoas que amamos ou até das outras, de lhes contarmos tudo, ainda que repetidamente, de insistirmos ou de, pelo menos, não colocarmos despertadores para abraços e pausas nos encontros, de fazermos da saudade um café ou um almoço; que façamos nascer tardes e serões interrompidos pelo tempo ou porque fomos fazer a inspecção ao carro, de beber a cerveja com aquele amigo que está apalavrada vai para dois anos, de não fintarmos o cronómetro do amor que se sente mas que, acima de tudo, se partilha. Porque, de repente, sem darmos conta, já não o podemos fazer e deixa de ser bonito para ser irremediável.