Fio da navalha
A proposta de orçamento apresentada por Mário Centeno é insuficiente porque falha no essencial: não tem um desígnio. Sem ideias, resume-se a um objetivo contabilístico: o superávit.
PS com o Bloco de Esquerda ou com o PCP, ou com os dois. E se for o PS com PSD, ou só com a fatia da Madeira somada ao PAN e a abstenção do Livre? Ou só o PS, com várias abstenções? Se são estas as contas que estão a ser feitas para o próximo Orçamento do Estado para 2020, está tudo errado.
Um Orçamento do Estado deve ter uma ideia política, ser um passo em direção a um destino que se quer atingir. Não se resume a uma folha de excel e a um amontoado de quadros com despesas e receitas. Tem de ter um fio condutor que ligue todas as escolhas e que dê significado a cada uma delas. É assim que se consegue explicar a escolha de determinadas prioridades em detrimento de outras opções, que se criam objetivos coletivos e se motivam as pessoas para os alcançar, a começar pelas próprias pessoas que estão sentadas à mesa do Conselho de Ministros.
E se um orçamento tiver uma ideia, aquela que lhe garante uma identidade, ela não é indiferente aos alinhamentos políticos possíveis, sob pena de não ser boa ou nem sequer ser uma ideia. Um orçamento que não é carne nem peixe, que tanto pode ser de direita ou de esquerda, falha certamente nas escolhas essenciais porque falha desde logo na sua própria coerência.
Se tudo o que escrevi antes assenta numa lógica simples e de mero bom senso, a atitude do Governo mostra que a lógica, por vezes, é uma batata. António Costa dizia que queria conversar com Bloco de Esquerda e PCP as condições para a aprovação do Orçamento do Estado para 2020, mas fez questão de tornar público que já estava a trabalhar num plano B para o aprovar com os votos do PAN e do PSD Madeira e uma abstenção do Livre. Diz o povo que quem é prevenido vale por dois, mas essa ideia nem sempre é válida na política. Quem anuncia assim um plano B é porque já deixou de estar empenhado no plano A? Se esta dúvida era legítima antes da apresentação da proposta do Governo para o orçamento de 2020, depois de conhecermos esse documento já não é uma dúvida, é uma certeza.
O Presidente da República acha que é só um problema de falta de diálogo, mas vai para além disso. A verdadeira questão é de falta de definição política e de projeto para o país.
O período entre 2015 e 2019 ficou marcado pela reposição da normalidade que tinha sido negada no período da troika pela mão de PSD e CDS. Com virtudes e defeitos (os maiores foram a falta de investimento público e a manutenção do código de trabalho da troika), havia uma compreensão generalizada do que se pretendia fazer. Se essa clareza parece parte do passado, não é mera coincidência.
O toque de finados à “geringonça” ocorreu ainda não tinham passado 7 dias desde as eleições legislativas. O PS negou qualquer acordo à esquerda e escolheu o caminho do fio da navalha, com negociações caso a caso. O que parecia ser uma escolha ponderada, demonstra ser uma navegação à vista, fuga em frente após a ida às urnas ter negado a maioria absoluta. O resultado é o impasse nas escolhas estratégicas e a política resumida ao calculismo partidário.
A proposta de orçamento apresentada por Mário Centeno é filha deste marasmo. É insuficiente porque falha no essencial: não tem um desígnio. Sem ideias, resume-se a um objetivo contabilístico: o superávit. Passa ao lado da crise da habitação, onde não cumpre sequer o que estava no programa do PS e já era poucochinho. Apouca os trabalhadores do Estado com a proposta de aumentos salariais e esquece os trabalhadores do privado, em particular quem trabalha por turnos e a quem já tinha sido prometido mais direitos. Atira para Bruxelas a decisão sobre a baixa do IVA da energia na tentativa de arranjar desculpas para deixar tudo na mesma. E se poderão dizer que reforça o investimento na saúde, a verdade é que prevê gastar em 2020 o mesmo que se gastou em 2020, o que não é nenhum reforço orçamental.
É possível endireitar o que nasceu torto? É preciso pousar a máquina do calculismo partidário para passar a discutir as soluções que o país precisa, sem fantasmas de maiorias absolutas falhadas ou orgulhos feridos. As pessoas assim o exigem. Será possível?
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico