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Tabaqueiras: trabalho infantil, cancro e lobbying em países em desenvolvimento
A nuvem de fumo que envolve a indústria tabaqueira mundial esconde efeitos negativos que ultrapassam o aumento de risco de cancro para o ser humano. Bitter Leaves, do fotógrafo Rocco Rorandelli, revela os malefícios de cariz social, económico e ambiental associados à indústria multimilionária do tabaco.
No mundo existem 1,1 mil milhões de fumadores – ou seja, uma em cada seis pessoas é consumidora de tabaco. O prejuízo para a saúde humana é bem conhecido, sobretudo no Ocidente; mas e os malefícios de cariz social, económico e ambiental associados a esta indústria multimilionária? Sabemos que provoca cancro, mas saberemos que 24% dos cigarros que fumamos passaram pelas mãos de crianças trabalhadoras? Ou que 600 milhões de árvores são abatidas, anualmente, para dar espaço a plantações de tabaco?
O fotógrafo italiano Rocco Rorandelli dedicou dez anos à recolha de dados e compreensão do impacto da indústria do tabaco para o ser humano — e em todas as suas vertentes. Visitou nove países de cinco continentes para criar um documento fotográfico amplo, completo, que publicou recentemente, em conjunto com a GOST Books, e que baptizou Bitter Leaves. “Percebi como é que o tabaco promove a degradação de solo fértil, ameaça os trabalhadores com químicos periogosos, explora o trabalho infantil e o de migrantes ilegais, utiliza marketing agressivo sobre clientes menores de idade, faz lobbying no sentido de promover a sua expansão para novos mercados e estratos sociais”, pode ler-se na página da campanha de crowdfunding lançada por Rocco entre Abril e Maio de 2019.
Um dos países visitados pelo fotógrafo foi a Indonésia, o segundo maior mercado de fumadores do mundo — a seguir à China, que consome 30% dos cigarros produzidos no mundo. Na Indonésia, mais de um terço da população é fumadora: no país são vendidos 315 mil milhões de cigarros por ano. É também a nação com a maior taxa de fumadores menores de idade: cerca de 30% das crianças começa a fumar antes de completar os dez anos, graças a campanhas de marketing agressivas que não estão sujeitas a qualquer tipo de regulação.
Se na Indonésia foi o consumo tabágico infantil que marcou o fotógrafo, na Índia foi a realidade do trabalho infantil que mais o impressionou. No país onde 36 milhões de pessoas têm empregos relacionados com a indústria tabaqueira, 1,7 milhões dos trabalhadores são crianças, que ficam assim afastadas do sistema educacional, em posição de risco de acidente e de doença, devido ao contacto com nicotina e pesticidas decorrente da apanha e do manuseamento da planta do tabaco. Náuseas, vómitos, fraqueza, tonturas, dores de cabeça, cólicas abdominais e dificuldades respiratórias são os efeitos desse contacto. O autor aponta, também em território indiano, para o flagelo do ciclo vicioso de créditos no sector agrícola, que deixa os agricultores em situação de pobreza.
"Enquanto a quantidade de tabaco cultivado nos países desenvolvidos decresce a um ritmo estável, o cultivo nos países em desenvolvimento aumentou significativamente”, pode ler-se no relatório de 2003 da Organização Internacional do Trabalho das Nações Unidas, citado no livro pela consultora científica Judith Mackay, também autora do prefácio do livro. Apesar de não estarem directamente envolvidos no processo do cultivo do tabaco, os países ditos “desenvolvidos”, sobretudo europeus e norte-americanos, não estão isentos de responsabilidade na distribuição, comercialização e lobbying em prol da manutenção e prosperidade desta indústria. Pelo contrário.
Em Wilson, nos Estados Unidos, está sediada a Universal Leaf Tobacco, que é a maior comerciante de folha de tabaco do mundo, com sucursais em cinco continentes. A empresa factura mais de dois mil milhões de dólares (cerca de 1,8 mil milhões de euros) por ano, apesar de ter apenas 24.000 trabalhadores. A Philip Morris International, a maior e mais forte empresa no sector tabaqueiro do mundo, emprega 77.000 pessoas em todo o mundo. Na Europa, a Henkel é líder mundial no fornecimento da cola que une as várias partes do cigarro, um negócio multimilionário que é disputado por outras empresas. O que diferencia a Henkel e a torna líder é o facto de ter criado um centro de produção em cada continente.
“O livro pretende, em última análise, consciencializar para a complexidade dos impactos e as várias faces da indústria global do tabaco”, explica Rocco Rorandelli. “É um livro de interesse considerável para fotógrafos, para activistas do controlo das tabaqueiras e para aqueles que estão interessados em compreender a construção tentacular de uma estrutura derradeiramente capitalista.”