Reino Unido, Europa e Portugal. E depois do “Brexit”?
No quadro da UE, Portugal perde o grande defensor de uma visão marítima, atlântica e extrovertida da Europa.
1. A vitória muito confortável dos conservadores e de Boris Johnson nas eleições britânicas nada tem de surpreendente. A grande maioria dos analistas diz que ela se ficou a dever à fadiga do eleitorado com o impasse do “Brexit” e à pressa que esse impasse exerceu sobre a agenda política. A que junta as fragilidades evidentes do líder trabalhista, um radical de esquerda, incapaz de apresentar uma ideia clara sobre o “Brexit” (porque era a favor dele, sem o poder dizer claramente). Terão decerto uma boa parte de razão os analistas que assim discorrem. Mas, a meu ver, foi o facto de ter sido capaz de negociar um acordo de saída com a União Europeia e de o fazer “aprovar” pela Câmara dos Comuns o principal factor da ampla vitória de Boris Johnson. Com efeito, quando assumiu as funções de primeiro-ministro, ninguém acreditava que conseguisse renegociar o acordo e, muito menos, que, logo de seguida, conseguisse demonstrar, num parlamento visceralmente dividido, que esse acordo reuniria um voto maioritário. Assim que obteve o acordo — um acordo não tão diverso do de Theresa May —, Boris Johnson garantiu a vitória nas eleições seguintes, pois deu credibilidade e consistência a toda a sua estratégia anterior (que, a dada altura, mais não parecia que pura táctica atrabiliária). Para este feito, muito contribuíram dois factores: a vontade da UE em dar esse acordo e a arriscada mudança de posição inglesa quanto à Irlanda do Norte.
2. Sim, a UE quis oferecer um acordo a Boris Johnson, pois também ela estava fatigada, senão mesmo exausta, com o arrastamento da incerteza e indefinição. Ao dar-lhe o acordo, apostou nele como o interlocutor para a concretização do “Brexit”. Para conseguir o trato, Boris assumiu uma opção estratégica arriscada: resolveu prescindir da Irlanda do Norte, deixando-a na prática no seio da UE e aceitando criar uma fronteira dentro do Reino Unido no mar da Irlanda. A criação desta fronteira marítima tem tudo para servir de catalisador a uma futura separação da Irlanda do Norte. Convém, aliás, não esquecer que a maratona negocial para o novo acordo só foi iniciada depois de uma longa e profunda reunião entre os primeiros-ministros britânico e irlandês. O cálculo de Boris foi o de que, no médio prazo, será inevitável uma reunificação das Irlandas e, por conseguinte, não faria sentido sacrificar o “Brexit” à pretensão dos unionistas protestantes. Acresce que, ao invés de Theresa May, Boris já não dependia dos deputados unionistas do DUP. Fala-se, e muito, da repercussão na Escócia, mas a primeira vítima do acordo de Johnson foi mesmo a Irlanda do Norte. Conduzirá isto a uma reunificação acelerada das duas Irlandas? Eis algo que obviamente não se pode ter por certo. Tanto assim que os conhecedores do assunto apontam mais provavelmente para uma independência da Irlanda do Norte com adesão à UE, mas sem reunificação. Esta solução permitiria preservar e aprofundar a relação mútua actual, sem despertar fantasmas e traumas à larga comunidade protestante (e unionista) do Ulster.
3. O risco mais político destas eleições vai manifestar-se nos contornos da evolução escocesa. Com uma vitória claríssima, embora de 45%, o Partido Nacionalista Escocês exige um outro referendo à independência. Contra esta pretensão está o Governo de Londres, de resto, com um bom argumento: o último referendo é bastante recente (2014), não havendo decorrido tempo suficiente para levantar de novo a questão. Mas os escoceses dispõem também de um argumentário válido: o referendo anterior foi feito no pressuposto de que o Reino Unido continuaria membro da UE. Pois bem, tendo-se alterado radicalmente este dado e reafirmada nas eleições a vontade de pertença europeia dos escoceses, a questão deve ser novamente decidida. Haja ou não haja referendo, é evidente que a tensão entre Edimburgo e Londres vai aumentar significativamente. Se vier a haver segunda consulta e a Escócia se tornar independente, as consequências sobre a situação da Catalunha, do País Basco e da Flandres vão ser enormes. Ninguém tenha dúvidas de que as “regiões” com movimentos separatistas aguardam ardentemente por um precedente, seja ele o escocês, seja ele outro.
4. É fundamental não o esquecer: os dois Estados mais relevantes para Portugal em termos geopolíticos — Espanha e Reino Unido — atravessam uma séria crise constitucional. Portugal não pode, pois, alhear-se do que ali se passa. De momento, tem de redefinir as suas prioridades em função da saída do Reino Unido da UE. Será a primeira vez que, tirando as plataformas lusófona e ibero-americana, Portugal estará numa organização internacional/supranacional sem o Reino Unido (lembre-se a NATO, ONU, EFTA, Conselho da Europa, CEE e várias outras). É uma mudança significativa e substancial. Portugal tem, por isso, de reforçar fortemente as suas relações e os seus laços com o aliado britânico e, dentro da UE, tem de lutar pela maior proximidade e flexibilidade possível do bloco europeu face aos novos vizinhos britânicos (evitando todo o ressentimento e hostilidade). No quadro da UE, Portugal perde o grande defensor de uma visão marítima, atlântica e extrovertida da Europa. Deve, por isso, contrariando a inércia do governo Costa, federar cumplicidades que possam colmatar a falha do parceiro inglês. É importante que se estabeleça uma liga de países médios, de vocação atlântica e extrovertida, que possam compensar a lacuna geopolítica criada pela saída britânica. Devíamos organizar uma liga com a Suécia, a Dinamarca, a Holanda, a Bélgica e a Irlanda, justamente os Estados-membros que, em sede geopolítica interna, mais perderão com o “Brexit!”. A insistência do governo Costa em cingir Portugal ao “Clube Med” e à “coesão” é altamente empobrecedora. Como se verá com o êxodo inglês, haverá um défice atlântico e atlantista na UE, que, em caso algum, poderá beneficiar o país mais ocidental da UE. É preciso engenho e coragem para o superar.
NÃO. Ferro Rodrigues. Esteve mal na reacção à intervenção do deputado do Chega. Infelizmente, não surpreende. Nos últimos quatro anos, mostrou-se o menos isento dos presidentes da história da AR.
NÃO. Costa e Centeno. O esboço de “orçamento” para a zona euro é mau. No Eurogrupo, o Governo deu o acordo; agora, retirou-o. A dissensão pública na cimeira afecta a credibilidade do país.