Não queremos saber de Greta Thunberg, pois não?
Não, o futuro do planeta nada tem a ver com Greta, nem temos de nos desdobrar para compreendê-la ou odiá-la. Se for apenas isso, a sua ideia acabará tal como começou, na revolta de uma menina só.
A desumanização em curso resulta, paradoxalmente, nisto: um interesse desmesurado pela autobiografia de cada um, no espaço mediático. Nessa urgência em desumanizar, reduz-se a cooperação entre os cidadãos a uma anormalidade, apesar dos abundantes meios à sua disposição que facilitam a partilha de esforços. Até ver, a cooperação ainda é um dos elementos definidores da humanidade, desde os tempos em que a espécie vivia sob o signo do nomadismo e da recolecção. Depois, com o advento da agricultura, o trabalho intensivo e a sua divisão em tarefas e significados, os meios de colaboração humana diversificaram-se. Para além da linguagem, surgiram as leis e a ciência, passando pelo próprio dinheiro, ou não fosse ele, também, um instrumento de confiança mútua. Em suma, não mais parámos de cooperar.
A fragmentação das ideias, dos projectos ou das alternativas atravessa os mais variados domínios, acompanhado pelo avanço do interesse doentio pelos protagonistas. A tela maior desse cataclismo em sessões contínuas? Por estes dias, sem dúvida a política partidária, tão bem ilustrada em Portugal pelos partidos que, de súbito, irromperam pelo Parlamento adentro. Depois de anos a fio de atomização das ideologias no seio das forças progressistas, em nome de um ror de cliques, competindo entre si pelo prémio da opressão suprema, eis que se reduzem as novas forças representadas na Assembleia da República não à circunstância do deputado único, mas sim à condição de partido de autor ou em nome próprio. É em torno dessas personagens, das suas pretensões e do respectivo passado que vai sendo resumido, afinal, o caderno de encargos firmado com quem neles escolheu votar. Essa personalização da presença política reanima-se a cada incidente e statement, todos eles tão cheios de si e, por isso mesmo, virais. Virais porque exigem barricadas e, claro, juras de lealdade ou ódio.
A obsessiva personalização no espaço mediático não se tem resumido, todavia, à política partidária. Também no activismo e na intervenção cívica, a cooperação em torno de um destino ou do bem comum é cada vez menos isso e cada vez mais um rosto e a sua biografia. Seja na reportagem, na notícia de última hora, em colunas de opinião ou na mais vulgar caixa de comentário de uma rede social, a discussão vai sendo comprimida. De súbito, em vez de avaliarmos a justeza e os vários ângulos de uma determinada causa, somos conduzidos, tão-só, a destrinçar entre numerosos vilões, alguns heróis e meia dúzia de anjos. Greta Thunberg é bem exemplo dessa tendência, no campo das causas sociais.
Pela minha parte, admito: nesta altura já pouco me importa quem Greta é, que condição económica, social ou mental tem, se os pais são vegan ou não, quais os meios de transporte que utiliza, a quantas horas estará de Nova Iorque ou de Lisboa, se nas suas roupas já terá sido surpreendida por uma etiqueta com a inscrição Made in China. Dissecar esses pormenores reconduzir-me-ia à análise de incidentes e statements, seguida da escolha de barricadas e das habituais repercussões odiosas. O facto em curso não é nem pode ser a cruzada pessoal de Greta, quando em segundo plano se une uma geração de jovens que desdiz a atomização dos partidos e do activismo cívico. Nas ruas, com maior ou menor candura, esta geração de jovens coopera em prol de um mesmo fim: um futuro mais sustentável. Esse impulso renovado de cooperação, tão contrário à desumanização em curso, merece ser estudado, compreendido e destacado. E deve sê-lo por comparação, por exemplo, com os desígnios da minha própria geração que, nos países desenvolvidos, não teve nem revoluções de costumes para empreender, nem ditaduras para combater, muito menos Muros de Berlim para derrubar. Pelo grau de mobilização (226 países e 66.000 eventos de mobilização, desde Agosto de 2018), à mesma escala da adversidade enfrentada (global, portanto), pelo modo de actuação, privilegiando a contestação e a solidariedade, pelos riscos em que incorre, pois é de fácil apropriação pelos franchisings das micro-causas, mas também pelo liberalismo indefinido de Macron, pelo efectivo confronto geracional que o anima, enfim, por tudo isto e muito mais, estamos a falar do mais consistente movimento social jovem, em décadas.
Não trazer mais vezes para diante esse movimento social e o seu princípio de inter-ajuda, seja nas parangonas, seja na reportagem, seja ainda na opinião publicada, acabará por fragmentá-lo num pastiche de historietas individuais. Com isso, atrasar-se-á a sua apropriação pelas redes de colaboração institucionalizadas, leia-se partidos com vocação de poder, governos, grandes organismos internacionais. Só essa transferência do movimento para as instituições poderá acelerar a transformação das aspirações em efectiva mudança de políticas. Pior: não sendo essa a evolução, o movimento terá o mesmo destino do Occupy ou da Primavera Árabe. Ambos se desintegraram porque as instituições, a começar pelos grandes partidos, não traduziram as reivindicações dessas redes de colaboração inorgânica em prioridades políticas concretas. No caso do movimento Occupy, porque embora existissem essas bases institucionais nos países onde o movimento teve maior expressão, as mesmas nem se interessaram, tão preocupadas que estavam em zelar pelos resgates bancários. No caso da Primavera Árabe, o falhanço deve-se à consabida inexistência de semelhantes estruturas de base democrática em estados como o Egipto ou a Síria.
Dez anos volvidos, teremos aprendido a conhecer e a gerir movimentos colectivos de iniciativa jovem? Parece-me que não. Somámos à condescendência para como os mais novos esta personalização da luta, como se ela fosse uma causa autobiográfica, impedindo que a cooperação espontânea origine novas lideranças, uma maior representatividade e uma mais célere transferência das causas para o espaço da decisão. Não, o futuro do planeta nada tem a ver com Greta, nem temos de nos desdobrar para compreendê-la ou odiá-la. Se for apenas isso, a sua ideia acabará tal como começou, na revolta de uma menina só.