Manel Cruz, o ex-líbris da loucura poética

Tu não pisaste um palco, tu magnetizaste-o. Com todos os olhares virados para ti, eu olhava para os outros e via a chama a arder na poesia que cada um escrevia com os seus lábios.

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Anna Costa

Manel, bem-vindo. Bem-vindo a todos os mundos que chocam com o teu. Conhecia-te há muito tempo, mas sempre te conheci como a voz que correu comigo todos estes anos, lado a lado com os Ornatos Violeta. Nunca te tinha ouvido ao vivo e não há forma de te esquecer daqui em diante. Quando subiste ao palco, não sabia que vida iria despertar em ti e que iria acordar a minha numa insónia meditativa. Mas senti o que já sentia antes quando te ouvia, um vitorioso guardião da solidão do meu desassossego. E a ressonância do melhor que há em ti continua a fazer tremer o monstro que há em mim.

Tu não pisaste um palco, tu magnetizaste-o. Com todos os olhares virados para ti, eu olhava para os outros e via a chama a arder na poesia que cada um escrevia com os seus lábios. Uns abraçavam todos os teus acordes e libertavam a euforia do sentido que as tuas palavras lhes tinham oferecido; outros, emocionavam-se tanto quanto o eco das tuas mensagens conseguia perfurar por corações adentro; e, ainda outros, talvez os mais nostálgicos, perante si próprios fechavam os olhos e deixavam-se guiar no imaginário para purgarem as migalhas de dor, amigas das sombras.

Eu olhava de maneira fantástica para ti: esforçava-me por captar todos os detalhes das tuas transformações. Quando te movimentavas, conferias um malabarismo encantador aos olhos de quem te admirava e reparei que, apesar de não saberes para onde ias, levavas quem te via a encontrar um lugar que procurava em si para poder dançar com as suas imperfeições. Mas diria que todos os astros se alinharam quando a liberdade foi cúmplice da tua voz selvagem. E querias que te vissem por inteiro: tiraste a camisola e deixaste o carnal tirar o reino ao comum. Despido de vaidades, ergueste a tua voz até ao futuro de quem te ouviu naquele dia.

E a verdade que mais me assombra em tudo o que vi é que parecias desconcertado. Tal como todos os que te ouviam ali, ninguém tinha medo dos outros, porém todos tinham medo de não conseguir ser tanto para si como tu mostraste ser para nós. Arrisco dizer que parecias um miúdo que depois de lhe tirarem tudo mostra a única coisa que tem para ser alguém. E, se esse fosse o caso, diria sem te conhecer que és mais do que já alguma vez imaginaste. Esta é a tua voz, a que se repete nas nossas cabeças e eu espero, tal como todos, que também seja a que se repete na tua.

Quando todos os caminhos nos levam para longe, o teu volta a trazer-nos para perto e aconchega a dor de quem foge. E quando regressava a mim, um momento em especial reuniu tudo o que sonhava naquela noite e era o pensamento de alguém que precisava tanto de ti, como tu do palco. Eu vi-o no brio de um olhar que não perdia o espaço tridimensional que tu ocupavas, Manel. Depois de investigar, descobri esse olhar de silhueta feminina, que dizia assim: “Manel, cá estamos nós outra vez. Cá estou eu bem dentro de mim de novo, para onde só tu me sabes guiar.”

Gostava de terminar com o reflexo que tive ao entrar no Casino Lisboa naquele dia, 4 de Novembro. Antes de ti, Manel, também ali já tinha visto Slow J; ao contrário do outro concerto, no teu vi demasiados lugares vazios que não multiplicavam o nosso espírito. Muitos diriam que são poucos, mas são bons; diriam também que só interessa quem está. Eu digo ainda outra coisa, pois lembro-me de ter 16 anos e bater de frente com o Clube dos Poetas Mortos. Não consigo esquecer a ponte que cruzo sempre que vejo algum artista que sangra da mesma maneira que tu em palco e escrevo, tal como o Robin Williams dizia, “poesia, beleza, romance, amor, é por isto que vivemos”. Depois fecho o livro e guardo-o sozinho no cimo de todos os outros. Gostava que mais pessoas lessem estes livros que nos reúnem no nosso sofrimento, em segredo, à frente de toda a gente.

No final, volto ao início, porque é quando me lembro de ti, que me lembro que a verdadeira força vem de dentro. E, por dentro, existe uma ânsia em todos nós que quer sangrar tanto como tu e nunca chegar a morrer por aquilo que nos vai matando nestes momentos, em que não somos ninguém até chegar a ti.

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