Na última semana, as questões em torno da disforia de género regressaram à discussão, após uma reportagem televisiva e consequente debate. As redes sociais, democraticamente, deram voz a todos. Deram voz ao sofrimento dos transexuais, às associações que defendem os seus direitos e até àqueles que pensam que a identidade de género é um capricho, que é possível influenciar alguém a querer identificar-se com o género oposto. Deram voz àqueles que pensam que a educação poderá influenciar uma menina a querer ser menino, ou vice-versa.
Por esta ordem de ideias, um indivíduo transexual é fruto de uma família que falhou na educação, que falhou em tatuar no pequeno cérebro infantil que “se tem pilinha, é menino”. Esquecem-se que, provavelmente, e de acordo com a evidência científica mais actual, esse cérebro já estava tatuado numa cor diferente da dicotomia rosa-azul quando nasceu. E é neste ponto que vejo necessidade de escrever a todas as famílias que acolhem no seu seio um adolescente ou adulto “trans”.
Ao longo dos últimos anos, tenho contactado com famílias de indivíduos “trans” ou com os relatos que estes me fazem dos seus pais, irmãos, avós. Se os “trans” sofrem, as suas famílias não sofrem menos. Nenhuma destas famílias precisa que alguém lhes aponte o dedo; em algum momento, quase todas já o fizeram a si próprias. Já se perguntaram se a culpa foi sua, se houve alguma coisa que pudessem ter feito de outro modo, se ignoraram os sinais. Emoções como choque, raiva, culpa, vergonha, medo foram engolidas e vividas na solidão.
A revelação de que um filho é transexual é um choque para qualquer pai, mesmo para aqueles que pudessem ter suspeitas de que algo era diferente com base em alguns sinais. Mesmo a família mais carinhosa necessita de um período de adaptação. Alguns pais atribuem a si a culpa, ruminando situações do passado em que acham que poderiam ter sido mais carinhosos, menos permissivos, ter estado mais atentos. Para além disso, o facto de não conseguirem aceitar de imediato a revelação da transexualidade e não oferecerem amor incondicional aumenta esta culpabilidade.
Não raras vezes, alguns pais reagem como se os filhos tivessem morrido. Embora o filho esteja vivo, a revelação da transexualidade representa a morte de uma imagem externa e seu significado, bem como a morte de sonhos e expectativas. Muitos pais vêem os filhos como uma extensão de si. Assim, se algo “está errado” com os filhos, também o está com a família, podendo haver dificuldades em enfrentar a sociedade, conduzindo a isolamento social. Estas famílias precisam de informação fidedigna e suporte, não de desinformação baseada em preconceitos.
Os relatos dos meus utentes com irmãos mais novos são habitualmente comovedores. São as crianças que mais facilmente se adaptam na família, sem recriminações, com amor incondicional. Porque realmente as crianças são ardósias imaculadas onde podemos escrever com o giz da tolerância, respeito e educação. E é isso que está em causa: ensinar às crianças que não somos todos iguais, que a diferença existe e que merece respeito e compreensão. Não creio que alguma vez se torne linear para uns pais compreender a transexualidade de um filho; afinal o sexo foi das primeiras coisas que partilharam com o mundo: é menino, é menina! Mas acredito que, num mundo mais tolerante, a aceitação seja menos dura, um mundo onde o filho não seja insultado, marginalizado ou agredido por ser quem é. Por isso, deixem as pessoas em paz.