Igualdade vs Liberdade — Joacine tem razão
A crítica de que estaríamos perante uma herdeira tardia do velho bolchevismo era expectável, o que não significa que seja correcta. A meu ver não o é
Na semana em que decorreu a discussão do Programa do Governo na Assembleia da República, o debate político mais interessante foi originado por umas declarações proferidas pela novel deputada do partido Livre numa entrevista concedida a este jornal. Instada pela entrevistadora a demonstrar como o partido Livre diverge radicalmente da Iniciativa Liberal, mau grado partilharem nas respectivas designações a referência à ideia de liberdade, optou por responder da seguinte forma: “O conceito de liberdade é completamente diferente. Não existe liberdade sem igualdade. (…) Sem igualdade não há liberdade nenhuma.”
Perante tais considerações surgiu de imediato uma acusação de algum modo previsível, a de que a deputada do Livre subvalorizava a liberdade dispondo-se mesmo, no limite, a sacrificá-la no altar da igualdade. As suas afirmações teriam, assim, um carácter liberticida e inscrever-se-iam na longa tradição de um certo socialismo que historicamente desvalorizou as chamadas “liberdades formais” e acabou por edificar regimes profundamente autoritários. Estaríamos perante uma herdeira tardia do velho bolchevismo. Como disse atrás, esta crítica era expectável, o que não significa que seja correcta. A meu ver não o é e procurarei de seguida explicitar este meu ponto de vista.
Para esse efeito socorro-me do auxílio de Robert Legros, autor de, entre outras obras, um livro particularmente interessante intitulado O Advento da Democracia. Legros estabelece uma distinção nítida entre as sociedades aristocráticas e as sociedades democráticas. Estas últimas aparecem na História na sequência daquilo que ele designa como a “invenção colectiva de uma forma de sociedade e de um modo de coexistência radicalmente novos, fundados sobre um princípio de igualdade dos cidadãos enquanto homens, sobre um princípio de autonomia do homem enquanto tal e sobre um princípio de independência individual”. Ainda que cada uma destas ideias possa ser anterior ao advento da democracia, é só quando esta nasce na época moderna que cada uma delas se passa a constituir num princípio orientador da vida em sociedade e modelador das atitudes quotidianas. Nesta perspectiva, a cultura democrática exige e garante a articulação entre os princípios da igualdade, da autonomia humana e da independência individual. O ser humano liberta-se de qualquer predeterminação absoluta imposta pela tradição ou pela religião, percebe-se a si próprio como um indivíduo irredutível às suas múltiplas pertenças (classe, género, etnia, nação) e compreende o outro como ontologicamente igual.
Já Norberto Bobbio, no seu célebre livro Direita e Esquerda, opta por considerar que o que distingue a esquerda e a direita moderadas e democráticas é a maior preocupação que a primeira revela em articular a liberdade e a igualdade, enquanto a segunda se atém mais ao conceito de liberdade. Isso significa que, no fundo, estamos perante duas representações diferentes da liberdade. Para a direita democrática a liberdade é sobretudo entendida como a garantia de preservação de uma esfera de privacidade individual impermeável a qualquer invasão indevida da esfera colectiva; para a esquerda democrática a liberdade é vista como a possibilidade de plena afirmação das múltiplas potencialidades de cada indivíduo, o que pressupõe a consagração de direitos de natureza económica e social. Ora, esta diferença, sendo muito significativa, é, apesar de tudo, menor do que aquela que separa tanto a esquerda como a direita moderadas da esquerda e da direita extremistas.
Estou certo de que o Livre se situa claramente no espaço da esquerda democrática e, como tal, não incorre no erro de desvalorizar aquilo que, como já referi anteriormente, os marxistas-leninistas designam por meras liberdades formais. Sem essas liberdades rapidamente caímos em soluções autoritárias, senão mesmo totalitárias, como o século XX se encarregou de demonstrar. Em nome de umas pretensas liberdades reais, o comunismo contemporâneo de tal maneira oprimiu e esmagou seres humanos em concreto que, durante o período de ressaca do seu monumental falhanço, se tendeu a acreditar que só os liberais amavam verdadeiramente a liberdade. Nada mais falso. Felizmente, há uma corrente de opinião, vasta e plural, que preconiza uma outra concepção de liberdade sem cair na tentação de a subvalorizar em relação a outros princípios.
O contributo de Robert Legros reside precisamente na tese de que a liberdade e a igualdade não só não são incompatíveis como até são absolutamente complementares e imprescindíveis à edificação de uma sociedade democrática. Atendendo ao percurso e às lutas travadas por Joacine Katar Moreira, estou certo de que é nesta corrente de opinião política que ela se reconhece. Deixemos por isso as acusações de liberticídio para os verdadeiros inimigos da liberdade, situem-se eles à esquerda ou à direita.
Comemoram-se, aliás, por estes dias, trinta anos sobre a queda do Muro de Berlim. Será tema de um próximo artigo, mas não posso deixar de realçar que ainda há em Portugal uma certa esquerda nostálgica das brutais ditaduras comunistas do Leste europeu.