Ney Matogrosso canta “coisas sérias” num tempo de “retrocesso enorme”

O novo espectáculo de Ney Matogrosso parece feito para o Brasil de Bolsonaro, mas foi pensado muito antes dele, como diz o cantor ao PÚBLICO. Nos coliseus, este domingo no Porto e dias 5 e 6 em Lisboa.

Foto
Ney Matogrosso em Bloco na Rua DR

Depois de Atento aos Sinais, espectáculo que pelo seu enorme êxito ficou cinco anos em cena, rodando por inúmeros palcos, Ney Matogrosso estreou Bloco na Rua. Que parece feito para a era Bolsonaro (há até quem o veja como uma espectáculo de protesto) mas na verdade foi idealizado ao pormenor anos antes, noutro momento da crise brasileira. Já rodado no Brasil, em vários palcos, chega agora a Portugal, com três datas marcadas nos coliseus, este domingo, dia 3, no Porto e dias 5 e 6 em Lisboa (sempre às 21h).

“Este repertório foi a décima opção”, explica Ney Matogrosso ao PÚBLICO, em Lisboa e em trânsito para Londres. “Comecei a fazer esse roteiro quando faltavam dois anos para terminar o show Atento Aos Sinais, que durou cinco anos. E fiz dez roteiros antes de chegar a este.” O que nunca lhe tinha acontecido antes. “Em geral faço dois ou três, mas esse, como tinha tempo, fiz mais. Aí, pensei: não quero cantar música inédita, porque no Atento Aos Sinais tinha muita música inédita; quero cantar só o que me der vontade de cantar, independentemente de já ter sido gravado ou não.” O apuramento foi, assim, maior, mas à medida que as canções iam sendo testadas, algumas iam ficando: “Aí tem música do primeiro repertório, ainda. Mulher barriguda e Tem gente com fome, duas que eu queria cantar de novo, ou o Bloco na rua – inclusive o nome do show saiu dela. E tinha muita coisa (até dos Novos Baianos) que acabou não entrando.”

Guerra? Tomara que não

Não havia, portanto, uma ideia-base, tanto que o próprio título do espectáculo acabou por surgir no final. “Não tinha uma ideia, mas agora as pessoas dizem que é um show político. Mas não tinha Bolsonaro no panorama, quando comecei. As coisas estavam más nessa altura, o problema é terem piorado. Então o repertório ficou actualíssimo, porque houve um retrocesso enorme, em todos os sentidos. Mas não foi para isso que eu fiz este show, porque as músicas já estavam escolhidas antes de ele aparecer.”

Ao longo do espectáculo, que reúne duas dezenas de títulos, podem ouvir-se canções como Eu quero é botar meu bloco na rua (Sérgio Sampaio), A maçã (Raul Seixas), O Beco (Herbert Vianna e Bi Ribeiro), Mulher Barriguda, do primeiro álbum dos Secos e Molhados (1973), Postal do Amor (Fagner, Fausto Nilo e Ricardo Bezerra), Ponta do Lápis (Clodô e Rodger Rogério), Como 2 e 2 (Caetano Veloso), Feira Moderna (Beto Guedes, Lô Borges e Fernando Brant) ou Álcool (bolero filosófico), de DJ Dolores, da banda sonora original do filme Tatuagem. “Quando vi esse filme, há muitos anos, eu disse logo que queria cantar aquela música. E aqui há isso: músicas que eu ouço um dia e digo: vou cantar. Como A distância. Mas eu não resolvi cantar por causa do Roberto [Carlos, co-autor da canção com Erasmo Carlos], mas porque vi um filme do Visconti onde no meio do filme entrava aquela música em italiano. E eu achei a música linda [o filme é Violência e Paixão, de 1974, onde a canção é cantada por Iva Zanicchi, com o nome Testarda io. Roberto Carlos viria também a gravar essa versão, em italiano].

Desta vez, Ney entra em palco com um traje que manterá até final (não o mudará, ao contrário do que sucedeu em vários espectáculos anteriores), aparentando um lagarto de silhueta humana, com o rosto oculto, que ele descobre com um fecho éclair. “Esse é o início do show. Eu abro aquilo e começo a cantar Eu quero é botar meu bloco na rua. Na década de 70, essa canção tinha uma conotação política, mas eu nem sabia. Para mim, ele indica algo em movimento. E liga bem com o resto do repertório. A abertura é fatal: Bloco na rua, Jardins da Babilónia e O beco.” A colagem de temas obedece aqui, nos propósitos de Ney, sempre a uma lógica? “Não é literal. Mas na minha cabeça é uma ideia que vai transcorrendo durante o show.” Que fecha com Mulher barriguda. “Termina dizendo ‘Mulher barriguda/ haverá guerra ainda?/ Tomara que não’.”

O que as antenas captam

Uma acha para a fogueira dos que vêem aqui um espectáculo político? “Eu sei que estou dizendo coisas muito sérias e que resultam sérias neste momento. Mas aí o que é que eu vou fazer? Não posso impedir que as minhas antenas captem! Não falam que os artistas têm antenas?” No Brasil, a recepção ao espectáculo (“já rodei por várias capitais, várias vezes”) tem sido excelente, diz Ney. “Instantaneamente, na hora em que eu abro a boca e começo ‘Há quem diga que eu…’, já sabem do que se trata. E quando canto ‘Eu quero é botar…’ todo o mundo está cantando junto. Mais do que no Atento aos Sinais, que já tinha uma abertura poderosa.” Com Ney Matogrosso (voz), estarão os mesmos músicos que o têm acompanhado nos últimos anos: Sacha Amback (direcção musical e teclados), Marcos Suzano e Felipe Roseno (percussões), Dunga (baixo), Maurício Negão (guitarra), Aquiles Moraes (trompete) e Everson Moraes (trombone).

Bloco na Rua já foi gravado para edição em DVD, mas sem audiência. “Desta vez, fiz diferente. Aluguei um teatro, botámos todo o equipamento, mas sem público, porque queria dar liberdade à equipa de filmagens para entrar no palco. Por exemplo: A maçã foi filmado com a câmara quase junto da minha cara. E gostei do resultado. Não conheço nenhum outro DVD semelhante a ele, não parece a filmagem de um show, parece um filme. Porque dei ao [realizador] Filipe Nepomuceno total liberdade. Sempre gostei das intervenções dele nos anteriores e neste ele trabalhou totalmente livre. Transgrediu tudo, ficou uma coisa psicadélica.” O DVD será lançado ainda este mês.

Sugerir correcção
Ler 3 comentários