Concursos aconchegados
Sou Professor Catedrático e esta medida não irá já afectar a minha própria carreira académica. No entanto, enquanto contribuinte que vê desperdiçar dinheiros públicos e enquanto cidadão farto do actual relativismo que trata por igual o que é realmente diferente, julgo ser o meu dever cívico pronunciar-me.
No dia 28 de Junho do corrente ano, o Governo português abriu, de forma excepcional (pois apenas até ao dia 31 de Dezembro de 2019), sem discussão pública prévia e nada transparente (via artigos 76.º e 77.º do Decreto-Lei 84/2019 de Execução Orçamental), a possibilidade inédita de as universidades portuguesas realizarem concursos de “promoção interna”, i.e. concursos de progressão na carreira académica (de Prof. auxiliar para associado ou de associado para catedrático) completamente vedados a candidatos externos a cada instituição de ensino superior. Os únicos requisitos anunciados são a antiguidade (via permanência há pelo menos dez anos na mesma categoria), a existência de, pelo menos, dois candidatos para cada vaga e um tecto de 50% para o novo peso relativo dos Profs. associados e catedráticos no total dos Profs. de carreira.
A este propósito, tive oportunidade de ler no PÚBLICO dois excelentes artigos de opinião (dos Profs. João Gabriel Silva e Luís Aguiar-Conraria) muito críticos em relação à medida excepcional em apreço. Em ambos os artigos é salientado o risco de reforço da taxa de endogamia das universidades portuguesas (onde ainda cerca de 70% dos Profs. de carreira são funcionários da mesma instituição onde se doutoraram), o desperdício de dinheiros públicos não afectos à contratação simplesmente dos melhores candidatos (mesmo que externos) e a injustiça relativa sentida por outros candidatos internos eventualmente com melhor currículo, mas sem a antiguidade exigida.
Quero apenas acrescentar mais três reparos e fazer dois apelos. O primeiro reparo diz respeito aos colegas que têm trabalhado arduamente para construir um currículo capaz de os fazer vencer, no futuro, um concurso internacional normal (i.e. nos moldes actualmente estipulados pelo Estatuto da Carreira Docente Universitária) e que não cumprem o novel critério abstruso da antiguidade: não obstante o vosso esforço, esqueçam as vossas justas aspirações a progressão (em tempo útil) na carreira pois, até Dezembro de 2019, os vossos lugares serão ocupados administrativamente. O segundo reparo diz respeito aos novos Profs. auxiliares a recrutar, num futuro próximo, via concursos internacionais normais: esqueçam as vossas justas aspirações a uma regular progressão na carreira baseada no mérito pois, em Dezembro de 2019, os vossos lugares foram já ocupados administrativamente; terão de esperar pela aposentação da leva oriunda dos concursos de “promoção interna”. O terceiro reparo diz respeito aos actuais Profs. associados e catedráticos que ascenderam por mérito a tais categorias (o que, reconheço, não ocorre em todos os concursos internacionais normais): a partir de Janeiro de 2020, os vencedores dos concursos de “promoção interna” terão a mesma designação que vós, não sendo possível distinguir uns dos outros.
É de assinalar que, não obstante os dois artigos já referenciados, o Governo não tenha ainda contestado os argumentos aduzidos ou produzido qualquer justificação aceitável para a medida de excepção que criou. De igual forma, não ouvi qualquer partido político contestar a medida em apreço. Consequentemente, apelo a que mais colegas se manifestem publicamente contra os novos concursos de “promoção interna” que irão desperdiçar meios financeiros que seriam melhor utilizados no verdadeiro reforço da qualificação do corpo docente das universidades. Sou Prof. Catedrático e esta medida não irá já afectar a minha própria carreira académica. No entanto, enquanto contribuinte que vê desperdiçar dinheiros públicos e enquanto cidadão farto do actual relativismo que trata por igual o que é realmente diferente, julgo ser o meu dever cívico pronunciar-me.
Conforme previsto pelo Prof. João Gabriel Silva, o frenesim para a abertura de “concursos aconchegados” por “muitos professores que sabem que não têm hipótese de ganhar um concurso internacional” (essencialmente por ausência de produção científica relevante, acrescento eu) é real e a pressão é grande. Um dos argumentos aduzidos por colegas que muito respeito é o seguinte: se outras universidades e outros departamentos (da nossa universidade) pretendem abrir estes novos concursos de “promoção interna” sem qualquer pudor, qual é o racional de o mesmo não ser feito pelo nosso departamento? De facto, compreendo o argumento, mas também não quero ser conivente com esta medida irracional de abertura de concursos de “promoção interna”, razão pela qual não irei aceitar fazer parte de qualquer júri destes mesmo pseudo-concursos. E assim chego ao meu segundo apelo (utópico): gostaria que todos os actuais Profs. associados e catedráticos recusassem participar no júri de tais concursos.
Não tenho uma visão maniqueísta em que todos os actuais Profs. associados e catedráticos ascenderam por mérito e todos os novos pseudo-concursos irão ser ganhos por candidatos medíocres. Tenho consciência que os requisitos de produção científica aumentaram significativamente durante os últimos 20 anos e, portanto, torna-se mais difícil ganhar agora concursos internacionais normais do que no meu tempo. Mais ainda, devo confessar que conheço alguns candidatos aos novos concursos de “promoção interna” com um excelente currículo e devo reconhecer o esforço de algumas instituições de ensino superior (entre as quais, a minha entidade empregadora) para adicionar requisitos mínimos de qualidade aos novos concursos de “promoção interna”. Mas tal consubstancia somente uma tentativa de minimização de estragos. Com efeito, apenas concebo a existência de concursos de “promoção interna”, desde que acompanhados por dois requisitos: previsibilidade (i.e. devem funcionar numa base regular e não excepcional) e irrelevância (i.e. devem corresponder a uma percentagem mínima, por exemplo 5% do corpo docente, de modo a não hipotecar a produção científica da instituição e a premiar docentes com excelente performance pedagógica). Ora, a medida implementada pelo Governo vai exactamente ao arrepio destas duas premissas, pelo que urge denunciá-la, refutá-la e, eventualmente, reformulá-la, mas no âmbito da revisão do Estatuto da Carreira Docente Universitária (ECDU).
A este propósito, e na edição do passado dia 1 de Outubro de 2019, o PÚBLICO relata que apenas 20,4% dos docentes universitários estão actualmente nas categorias de associado ou catedrático, muito embora o ECDU preconize (há vários anos) um peso relativo mínimo de 50% para o topo da carreira. Reconheço que o expediente dos novos concursos de “promoção interna” é a forma mais rápida e barata de atingir o rácio de 50%. Mas, tal significa apenas “trabalhar para a estatística” e não aumentar o nível de qualificação do corpo docente: não haverá “sangue novo” e os docentes em Janeiro de 2020 serão exactamente os mesmos e com as mesmas qualificações que detinham em Dezembro de 2019, apenas com categorias diferentes. Mal comparado, seria o mesmo que tentar fazer uma equipa de futebol dos distritais lutar pela conquista da Liga dos Campeões apenas com base no expediente da compra de 11 magnificas camisolas com o nome de Eusébio da Silva Ferreira: após o apito inicial, infelizmente, a qualidade de jogo da equipa seria a praticada nos distritais e não a do Rei Eusébio.