Hoje é dia de reflexão, o dia em que deixamos de ouvir, ver e cheirar políticos para ouvirmo-nos, vermo-nos e sentirmos o nosso próprio odor. A propaganda eleitoral fica suspensa hoje e amanhã, e da próxima vez que ouvirmos políticos já vai ser: ou num tom de vitória, ou num tom de derrota, ou num tom de esperança, ou num tom de carta de suicídio - uma coisa é certa, vão estar todos inebriados. Um político também merece estar fora de si, para ser mais genuíno, para ficar mais solto e entrar na personagem que os assessores aconselham que seja.
Confesso que até aqui nunca precisei de reflectir para saber em quem votar. Na verdade, nunca precisei de campanha eleitoral, também. Serve este dia, então, para os portugueses digerirem tudo aquilo que foi dito em campanha eleitoral. Se quisermos seguir uma analogia com foco na alimentação, os políticos, quais pássaros-mãe, usaram os seus bicos para colocarem alimentos em todos os bicos dos eleitores, os passarinhos indefesos no ninho Portugal. Os eleitores não engoliram e esperaram até este dia para poderem saborear a mistela que lhes foi embutida. As palavras tornam-se bolo alimentar e seguem o caminho normal do aparelho digestivo. O estômago funciona como reciclagem e separa a mistela para os diferentes órgãos. As ‘ideias-porcaria’ vão para onde vocês estão a pensar, é uma analogia básica. As ‘ideias-que-parecem-boas’ seguem para o intestino delgado. E aqui assistimos a uma nova separação: as daqueles partidos que têm boas ideias mas que são recicladas de outras campanhas seguem para o fígado; as dos partidos que têm líderes com os quais simpatizamos vão para o coração; as do partido com o qual nos identificamos na totalidade, e que têm as melhores ideias, seguem para o cérebro e daí para a mão que faz cruzinhas. Pode acontecer as melhores ideias tentarem chegar ao cérebro das pessoas e descobrir que está devoluto. Nesse caso, as pessoas votam nas ‘ideias-porcaria’.
Fica esclarecido o que devem fazer, se ainda não o fizeram: reflectir. Se precisarem de ajuda visual para saberem o que é, visitem a rede social Instagram, onde mais de 80% dos utilizadores já reflectem em níveis básicos, ora fazendo de conta que estão a olhar para o horizonte, ora literalmente, reflectindo-se em espelhos.
Convém agora saberem o que não podem fazer em dia de reflexão e que funciona igual em dia de eleições. Segundo as x da Comissão Nacional de Eleições (CNE), há vários pontos que os portugueses devem ter em conta. Vejamos algumas questões que estão no sítio de internet da CNE.
A lei proíbe a realização de eventos na véspera e no dia da eleição?
É uma preocupação imediata porque a nossa vida social, o networking, não pode parar porque o mundo não pára de girar. Eu ajudo a resolver, com exemplos.
Exemplo 1: Uma mãe está a organizar o aniversário dos seis anos do seu filho, o Dr. Martim, e precisa de saber se pode fazê-lo no Oceanário, sem parecer que vai fazer campanha eleitoral. Pode fazê-lo? Sim, felizmente é permitido. O Dr. Martim pode esfregar à vontade na cara dos amigos os Action Men que receberá e não tem de celebrar o seu aniversário na clandestinidade.
Exemplo 2: O Dr. Tony Carreira preparou o seu regresso à residência no Altice Arena, em dia de eleições, e há dezasseis mil senhoras de meia-idade que vão apanhar autocarros charter das suas aldeias para poderem assistir a este evento mágico. Podem votar na mesma? Sim, se as eleitoras se deslocam, “devem criar-se condições” para que possam votar. Neste caso, pode tornar-se o camarim do Dr. Tony Carreira numa mesa de voto.
A ideia é que os candidatos tenham a liberdade para poderem participar em eventos mas que não caiam na tentação de fazerem apelo ao voto. Se quisermos tomar o exemplo do concerto do Dr. Tony Carreira, os candidatos podem assistir mas não podem adulterar as letras; devem evitar cantar “Aqui o sonho do menino é ser primeiro-ministro”. Também não vale cantar na língua original da música. Também conta como apelo ao voto.
Os candidatos podem participar em evento que se realize na véspera e/ou no dia da eleição?
A resposta é muito similar às respostas do Polígrafo: Sim, mas… Significa que os candidatos podem participar mas não podem assumir uma posição de relevo no evento.
Exemplo: Um candidato vai participar no evento NOS Alive e está no meio da multidão jovem a ouvir uma banda da moda, vamos dizer o Dr. Nickelback. Entra em palco, retira o microfone da mão do Dr. Nickelback, e começa a dizer: “Vocês são os melhores eleitores do mundo. Sabem como é que eu gostava que me reconhecessem? Como deputado eleito da Assembleia da República pelo círculo eleitoral de Castelo Branco.” Pode fazê-lo? Não. Deve manter-se quietinho no seu sítio, evitar estar em tronco nu ou às cavalitas de um voluntário de campanha, e acompanhar o concerto pelos ecrãs, longe do palco. Deve tentar usufruir e dizer coisas jovens, como ‘baril’ e ‘totil’, de modo a não se destacar.
Pode realizar-se um evento no interior ou junto da assembleia de voto?
O CNE dá uma resposta simples: “Não.” Confesso que quando li pareceu-me estar em letras maiúsculas, como que a dizer: “Que pergunta estúpida! Só um burro é que faria semelhante questão! Quer que diga com todas as letras? N Ã O!”
Exemplo: Um agente da Remax pode estar à porta de uma mesa de voto com um cartaz com a sua cara (óbvio) e com a frase de acompanhamento “Achou espaçosa essa sala da C+S? Nem vai acreditar na moradia que tenho para si. Hoje, open house com o Gestor Comercial n.º2 da terceira semana de Março de 2017 do concelho da Sertã. O sucesso não aparece, conquista-se. Deixe-me conquistá-lo a si.” Pode fazê-lo? NÃO!
Pode realizar-se uma procissão no dia da eleição?
Pode, desde que o seu percurso não coincida com o local de acesso à assembleia de voto. Como sabemos, e está documentado em toda a nossa história, a democracia só não começou mais cedo porque sempre que houve uma tentativa de democracia, com eleições livres, ninguém ia votar. E isso apenas acontecia porque os detractores da democracia contratavam figurantes para fazerem uma procissão em frente à assembleia de voto entre as 9 horas e as 19 horas. Fechavam as mesas de voto e não havia votos. A conclusão era sempre a mesma: as pessoas não querem democracia. Foi assim desde o tempo do Dr. D. Afonso Henriques até que o Dr. Afonso Costa tratou dessa questão. O Dr. Salazar ainda tentou recuperar essa tradição mas evaporou-se em 1974. Podemos não ter procissões mas a CNE vai ter de actualizar a sua lei em breve, substituindo procissões por ciclistas, que são um entrave à liberdade nas estradas. Logo, à democracia.
É permitido o lançamento de foguetes ou quaisquer fogos-de-artifício no dia da eleição?
Cá está, outra questão que apoquenta a maioria dos portugueses. Vivem o seu quotidiano sem percalços, acordam, tomam o pequeno-almoço, vão para o trabalho, lançam foguetes, almoçam, voltam ao trabalho, regressam a casa, jantam, fazem um show de trinta minutos de fogo de artifício no logradouro do prédio, vão dormir e repetem a rotina 365 dias por ano. Será que estão proibidos de serem quem são em dia de eleições? Não estão. Podem fazê-lo a seu bel-prazer, desde que cumpram as regras legais e mantenham em segurança os seus sete dedos.
É permitida a caça no dia da eleição?
A CNE deixa para o fim uma pergunta que mereceu ser incluída nas questões frequentes. Aparentemente, houve muita gente que foi votar e a seguir sentiu uma urgência para ir caçar mas não sabia se podia. Caros leitores que estão a pensar caçar uma perdiz ou um javali a seguir ao vosso dever cívico, tenho péssimas notícias: não podem, é totalmente proibido. É aqui que começa o fim da masculinidade.
Está no ADN do Homem sentir um sabor a sangue no momento da vitória. Os romanos construíram um império com vitórias sangrentas sobre outros povos, o título de Dr. Black Panther conquista-se com a derrota física do adversário, e estes são só alguns exemplos da História da Humanidade. Ao aceitarmos a democracia e o voto secreto, abandonámos o confronto físico para saber quem vence mas, biologicamente, precisamos de um sacrifício. E esse sacrifício, para não ser humano, passou a estar humanizado: através de sacrifício de um animal. Eu nem gosto muito de caça, o sangue mete-me nojo, mas tenho pulsões. O que faço é colocar o meu estagiário a jogar GTA em modo ‘Deus’ e satisfaço o meu ADN. Mas percebo que nem toda a gente seja tão sofisticada quanto eu e precise de ir caçar.
Não evite não reflectir. Fazer propaganda eleitoral nestes dias é punido por lei com seis meses de prisão e com uma coima que oscila entre os 2,49€ e os 24,94€, em dia de reflexão, e entre os 4,99€ e os 49,88€, em dia de eleições. É escusado apelar ao voto num dia em que todos sabem em quem votar, mesmo os que não sabem nada.