Catarina Martins queima pontes com o PS
É lamentável — e perigoso — que uma líder política, com a experiência de Catarina Martins, recorra a demagogia e argumentos oportunistas e falsos para tentar capitalizar votos
Com a campanha eleitoral na estrada, António Costa tudo fará para atingir ou aproximar-se da maioria absoluta. É o objectivo desejado pelos socialistas, mas que os líderes do PS não se atrevem a verbalizar desde que, em 1985, Almeida Santos se assumiu, até nos cartazes de campanha, como o candidato que queria 43% e acabou por ter 20,77% nas urnas, vencido pelo PSD de Cavaco Silva, na sua primeira vitória eleitoral.
É precisamente na disputa com o PSD que Costa fará o braço-de-ferro para garantir que a diferença de votos entre si e Rui Rio é a maior possível. Mas a conquista de um resultado de maioria absoluta ou no limiar desta pelo PS depende também da correlação de forças à esquerda no próximo Parlamento. Nesta frente, é evidente que a principal “guerra” dos socialistas é com o BE, partido que se afirmou, desde que nasceu, na conquista de votos ao PS. Assim, enquanto a Costa interessa conter o BE abaixo da barreira simbólica dos dois dígitos, Catarina Martins tudo fará para aumentar os 10,19% de votos obtidos em 2015.
António Costa sabe isso. Daí que, em entrevistas e no último debate a seis, tenha subido o tom de agressividade em relação a Catarina. Uma atitude normal em campanha, mas que foi entendida pelo BE como uma provocação. Na “guerra” de protagonismos, Catarina caiu na casca de banana lançada por Costa, quanto à questão de saber quem fez o quê para que fossem possíveis, em 2015, os acordos que permitiram a posse do Governo.
Perante a afirmação de Costa de que o BE fora obrigado pelas circunstâncias a entender-se com o PS para afastar Passos Coelho do poder, o clima entre ambos os líderes adensou-se e Catarina acabou a assumir formalmente, no último debate a seis, que tinha havido uma reunião, na manhã de 4 de Outubro de 2015, dia das eleições, entre representantes do seu partido e do PS, acusando o secretário-geral do PS de reescrever a história.
Sabe-se agora pormenores do processo, em declarações oficialmente assumidas pelos protagonistas, mas sabia-se já, por notícias então escritas, que houve de facto um encontro, nesse domingo de manhã, no Terreiro do Paço, em Lisboa, entre Francisco Louçã e Jorge Costa, pelo BE, e Fernando Medina, pelo PS. Mas sabia-se também o que agora Medina veio confirmar: esse encontro foi exploratório e “inconclusivo”.
Era também conhecido que os contactos entre socialistas e PCP eram bem mais conclusivos no dia da ida às urnas. Como o PÚBLICO noticiou em 2016, Costa tinha já posto em andamento o seu entendimento com o secretário-geral e a comissão política dos comunistas, usando como interlocutores iniciais os membros do comité central e presidentes das câmaras de Loures e do Barreiro, respectivamente Bernardino Soares e Carlos Humberto de Carvalho, com quem tinha estabelecido relações pessoais, enquanto deputado e presidente da Câmara de Lisboa.
É também evidente que, quando Jerónimo de Sousa afirmou “o PS só não será governo se não quiser”, na noite de 7 de Outubro, depois do primeiro encontro formal entre os dois partidos, na sede da Soeiro Pereira Gomes, essa declaração pública de disponibilidade para apoiar parlamentarmente um governo socialista não nascia de um improviso depois daquela reunião. No PCP não há, nem nunca houve, improvisos políticos a quente. A declaração era fruto do trabalho negocial prévio.
Catarina abriu assim a porta à dissecação do passado e acabou por permitir que ficasse explícito que o BE conversou com o PS depois de este partido iniciar conversações com o PCP. Mas, numa aparente atitude de desespero para conquistar eleitorado aos socialistas, Catarina escolheu outra linha de ataque a Costa que se apresenta como bastante menos legítima do ponto de vista político e ético. No sábado — véspera das eleições da Madeira, em que o BE foi expulso do parlamento regional —, a líder do Bloco fez uma declaração misturando a investigação do Ministério Público ao negócio das golas antifumo com o parecer do Conselho Consultivo do Ministério Público, divulgado na véspera, sobre a existência de negócios entre familiares de membros do Governo com entidades do Estado.
Um problema em que estavam em causa os ministros das Infra-Estruturas, da Justiça e da Cultura, assim como o ex-secretário de Estado da Protecção Civil José Artur Neves. Só que, no parecer da Procuradoria, José Artur Neves surgia porque o seu filho tinha prestado serviços a entidades públicas, mas não pelo caso das golas antifumo, negócio a que não esteve ligado e que é investigado pelo Ministério Público.
É lamentável — e perigoso — que uma líder política, com a experiência de Catarina Martins, recorra a demagogia e a argumentos oportunistas e falsos para tentar capitalizar votos. Mostra desespero perante o que pode ser o resultado do BE. Mas, sobretudo, revela de forma lapidar como a líder do BE está disponível para queimar de forma definitiva pontes para negociações futuras com o PS.